Texto de Uriel Araujo, traduzido e adaptado pela Frente Sol da Pátria. Originalmente publicado em: https://infobrics.org/post/32141/
Julio Armando Guzmán, ex-candidato presidencial peruano e membro do Reagan-Fascell Democracy Fellows na Fundação Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy), afirmou recentemente que a China em breve se tornará o maior detentor de dívidas na América Latina e que os Estados Unidos deveriam, então, tentar "combater a influência de Pequim na região através de investimentos no capital humano local, fornecendo mais bolsas de estudos para latino-americanos, etc." É possível argumentar, entretanto, que, mesmo da perspectiva dos EUA, a situação é muito mais complexa.
Muito se fala hoje sobre a competição americano-chinesa no Pacífico, que, aliás, vai muito além da questão do Taiwan - por exemplo, em abril do ano passado houve um grande alvoroço depois que as ilhas Salomão assinaram um acordo de segurança com Pequim. A preocupação dos EUA é que esse acordo possa abrir as portas para uma presença naval chinesa no Pacífico Sul. É verdade que Washington vem perdendo sua supremacia naval à medida que um mar multipolar parece estar surgindo.
No entanto, Milton Ezrati, consultor de estratégia de investimentos e membro do Center for the Study of Human Capital and Economic Growth na Universidade de Buffalo (SUNY), afirma que a hegemonia americana na sua zona de influência latino-americana está diminuindo de tal modo que, em realidade, Washington enfrenta no continente hoje o mesmo desafio que enfrenta no Pacífico Ocidental - ou seja, a China.
Há cerca de dois anos, escrevi sobre a crescente presença naval chinesa no Caribe. Nessa região, à semelhança do que acontece com as nações insulares do Pacífico, a política de auxílio de Pequim concentra-se na concessão de empréstimos para infraestrutura, muitas vezes acompanhados de uma campanha de diplomacia pública mais agressiva. Tais esforços diplomáticos também fazem parte de uma estratégia geopolítica mais ampla que visa fortalecer ainda mais os laços sino-caribenhos em outras áreas além do comércio, incluindo segurança e cooperação marítima. Isso é exemplificado pelo fato de que, nos últimos dois anos, os petroleiros iranianos têm frequentemente cruzado o mar do Caribe para entrar nas águas da Venezuela, em grande parte sem serem perturbados por qualquer intervenção dos EUA - principalmente devido ao apoio de Pequim.
Outro acontecimento que contribuiu para intensificar a competição EUA-China no continente foram as grandes descobertas de petróleo, feitas em 2020, no Suriname e na Guiana.
Além da já mencionada região caribenha, o comércio entre China e América Latina em geral, destaca Ezrati, aumentou a uma taxa extraordinária de, em média, 31% ao ano, ao equivalente de aproximadamente US$ 450 bilhões anualmente. Isso tornou a superpotência asiática a maior comerciante da América do Sul, ao passo que, na América Latina como um todo, perde somente para os próprios EUA. Das 33 nações do Caribe mais América Latina, 20 já aderiram à Nova Rota da Seda - e o Brasil está considerando a questão. Atualmente, a China tem acordos de livre comércio com Peru, Costa Rica e Chile, e as negociações com o Equador já iniciaram. Pequim também vem cortejando Brasília e, com o retorno de Lula à presidência, a cooperação sino-brasileira deve aumentar.
Além de empréstimos diretos para governos locais, a maior parte do investimento chinês nesta parte do mundo está concentrada na geração de energia, refino de petróleo e desenvolvimento. Esses investimentos resultaram em portos, barragens, ferrovias e muito mais. Os investimentos chineses também cresceram em setores estratégicos, como geração de energia e mineração. Os EUA não parecem ter muito a oferecer como alternativa.
De qualquer maneira, Pequim parece estar mais interessada nas matérias-primas da América Latina, incluindo petróleo, cobre, soja, lítio para baterias, e assim por diante. Em meio às atuais crises de segurança alimentar e energética, a China busca os dois itens, e América Latina tem aí um papel muito importante.
Como mencionado, a presença da superpotência do Pacífico na América Latina hoje vai muito além do comércio, abrangendo laços culturais, de investimento, diplomáticos e de segurança. Ezrati destaca que a China também oferece treinamento militar e equipamentos de defesa para os estados latino-americanos (embora até agora não tenha presença militar confirmada): vendeu equipamentos como radares de defesa aérea, aeronaves, etc. por cerca de US$ 165 milhões para Venezuela, Equador e Bolívia. Houve sinais, embora não comprovados, de presença militar chinesa em Cuba no contexto de uma maior cooperação cubano-chinesa. A ilha caribenha vive crises econômicas e migratórias há mais de um ano e recebe com apreço os investimentos de Pequim.
Tradicionalmente, a China tem conseguido transformar sua presença financeira e econômica em influência diplomática. Por exemplo, hoje apenas oito países latino-americanos reconhecem as reivindicações de soberania de Taiwan, ao contrário de todos eles vinte anos atrás.
Essa superpotência está, segundo Margaret Myers, diretora do Diálogo Interamericano (para o programa Ásia e América Latina), entrando em uma nova fase em relação ao seu engajamento global, diversificando suas parcerias no contexto de uma arquitetura internacional em transformação. A China já consome 16% do petróleo do planeta e metade do cobre. Com sua "reabertura" pós-COVID, a economia chinesa deverá crescer 5,7% em 2023, estima o banco Morgan Stanley - esta é, obviamente, uma notícia muito boa para os exportadores de commodities latino-americanos.
Ao contrário de Pequim, devido aos diferentes sistemas político-econômicos, Washington não pode alinhar de maneira tão fácil seus objetivos de política externa com as políticas de seus bancos e empresas privadas, e, além disso, os EUA agora não têm uma "estratégia abrangente" ou um conceito para unir seus diferentes desafios políticos no Caribe, de acordo com Scott B. MacDonald, que é um pesquisador do Global Americans Research.
Assim, "confrontar" seu rival asiático será difícil. É possível afirmar que praticamente o mesmo se aplica, até certo ponto, a toda a América Latina. Os EUA ainda mantêm sua posição hegemônica no continente, mas estão claramente em declínio e, portanto, é esperado um crescimento da presença econômica, diplomática (e talvez até militar) chinesa na América Latina.
NOTA DA FRENTE SOL DA PÁTRIA: Neste contexto de nova guerra fria e disputa entre duas superpotências, urge fortalecer o potencial industrial e agrícola brasileira e sul-americano, cultivando relações bilaterais com a China e outros países do BRICS que beneficiem o interesse nacional brasileiro para que o continente não seja “engolido” por nenhuma superpotência.
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