Texto traduzido e adaptado.
Alguns analistas têm opinado que o presidente Lula, em seu terceiro mandato, será um Lula bem diferente e que devemos esperar uma virada pró-americana e “atlanticista”. Eles argumentam que a agenda ambientalista, com foco na Amazônia, seria a brecha para “resetar” as relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos - com a ajuda ocidental para esta causa fazendo parte de uma espécie de “quid pro quo”, em troca de um apoio brasileiro à Ucrânia.
Na verdade, tem-se exagerado muito o fato de que Lula supostamente “condenou” a campanha militar russa na Ucrânia. A realidade é que, na mesma declaração, Lula citou os comentários do Papa Francisco sobre a OTAN ter atuado como um cão feroz “latindo” na porta de casa da Rússia e assim forçando Moscou a agir. Ademais, o presidente brasileiro recusou-se a enviar munição de tanque para a Alemanha, tremendo que esta fosse transferida para a Ucrânia.
É verdade que Brasília e Washington hoje parecem ter uma preocupação em comum com a floresta amazônica. Em novembro de 2022, John Kerry, representante americano para assuntos climáticos, sinalizou interesse em trabalhar com Lula para “salvar a Amazônia”. E, neste exato momento, o governo Lula está em busca de parceiros para obter financiamento para uma série de projetos destinados à floresta amazônica.
A Alemanha, por exemplo, disponibilizou mais de 200 milhões de dólares em contribuições a programas ambientais brasileiros. O Fundo da Amazônia, que estava congelado desde 2019, foi reativado pela atual ministra do meio ambiente, Marina Silva. É uma iniciativa de um bilhão de dólares, financiada pela Noruega e Alemanha, para combater o desmatamento.
Durante sua visita a Brasília no dia 30 de janeiro, o chanceler alemão Olaf Scholz falou sobre a necessidade de se ajudar “o pulmão do mundo”. Scholz também está interessado em aumentar a cooperação com os países latino-americanos em relação às fontes de energia renováveis e o chamado hidrogênio verde; afinal, a Europa passa hoje por uma crise energética (em grande medida auto-infligida).
Lula visitará os Estados Unidos no dia 10 de fevereiro, para se encontrar com Biden. Eles irão discutir temas como as mudanças climáticas e a segurança alimentar, entre outros assuntos. Resta saber o que Washington, sob a presidência de Biden, pode oferecer, com um Senado republicano.
Os EUA e as potências europeias têm instrumentalizado a agenda verde e usando-a como arma contra nações emergentes e em desenvolvimento - embora seja verdade que, há décadas, o Estado brasileiro fecha os olhos ao desmatamento ilegal e à pecuária na Amazônia. Trata-se de uma questão que também envolve poderosos interesses privados, corrupção e goza até de algum apoio popular, já que essas operações ilegais hoje são parte importante das economias locais.
A situação piorou ainda mais sob Bolsonaro e ele apoiou abertamente os interesses acima mencionados, contudo, isso, ironicamente, saiu pela culatra. A União Europeia, Estados Unidos e China vêm exigindo cada vez mais a rastreabilidade total do gado, a madeira e outros itens, por meio inclusive de diferentes legislações que estão sendo propostas para obstruir e até proibir produtos brasileiros associados ao desmatamento ilegal e invasão de terras indígenas.
Colocando a casa em ordem e levando, finalmente, a lei e a ordem para a Amazônia, o Brasil limparia sua imagem perante a comunidade internacional. Isso também capacitaria o país a legitimar e reafirmar sua soberania em uma região tão importante para o globo. As potências ocidentais podem ajudar com auxílios financeiros, embora muitas vezes o façam com uma agenda velada.
A questão da Amazônia abre uma janela de oportunidade para o diálogo Biden-Lula, entretanto resta saber o quanto de cooperação concreta Washington pode realmente oferecer, para além da retórica e dos acenos diplomáticos, já que o próprio Joe Biden enfrenta um país dividido. De qualquer forma, Biden deve, cada vez mais, “cortejar” Lula agora, especialmente depois que Pequim fez o mesmo - e há conversas em andamento sobre a adesão do Brasil à “nova rota da seda” chinesa, o chamado Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século 21.
A China continua sendo o principal parceiro comercial do Brasil, estando os Estados Unidos em segundo lugar. Para as potências emergentes sul-americanas, manter um bom relacionamento com o vizinho do norte é estratégico. Ainda no início dos anos 2000, um Lula bem mais esquerdista conseguiu manter um bom relacionamento com o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, com o cubano Fidel Castro e com o venezuelano Hugo Chávez - ao mesmo tempo.
Lula enfrenta agora uma crise política, em um país polarizado, com o espectro do terrorismo doméstico e uma nova “questão militar”. Os militares, em particular, devido à ideologia nacionalista, desconfiam muito de qualquer cooperação internacional na Amazônia que resulte em perda de soberania. Lula, por sua vez, não confia nos militares em razão das suspeitas - e de um corpo cada vez maior de evidências - que apontam para alguma cooperação militar com a recente tentativa de golpe da parte de bolsonaristas.
Ninguém sabe se Lula conseguirá o “desmatamento zero”, mas certamente há muito que ele pode fazer para tentar melhorar a situação. Até agora, a ajuda internacional concreta a esse respeito veio dos europeus, não dos EUA. E é muito cedo para falar sobre uma aliança Lula-Biden de qualquer tipo sobre a floresta tropical.
NOTA DA FRENTE SOL DA PÁTRIA:
Mesmo durante o regime militar anticomunista, na década de 1970, o Brasil adotou, sob o comando do general Ernesto Geisel, uma política externa baseada no chamado “pragmatismo ecumênico responsável”. Isso deve ser mantido. Pode-se argumentar que esse, com algumas variações, tem sido o tema principal da sinfonia do Itamaraty - apenas temporariamente interrompida pelo ocidentalismo radical de Bolsonaro, sempre ansioso para fazer concessões (não correspondidas) aos EUA, política que, sob Bolsonaro, continuou mesmo após a eleição de Biden.
O Brasil deve fiscalizar e regulamentar a ação de ONGs internacionais na Amazônia - mas também deve combater o desmatamento e garimpo ilegais, que contaminam o solo, destroem comunidades brasileiras e, além disso, fornecem, assim, “munição” para que potências estrangeiras questionem a legitimidade da soberania brasileira nesta região tão estratégica. Qualquer cooperação internacional neste sentido deve se dar de maneira tal que assegure plenamente a soberania e os interesses do Brasil e mantenha as boas relações com os vizinhos.
Nem Washington, nem Pequim nem Moscou!
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