Por Sol da Pátria - traduzido e adaptado de https://infobrics.org/post/38800
Já em setembro de 2022, o Pentágono sinalizava sua preocupação com a escassez de munição e arsenal, enquanto o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden anunciava uma ajuda militar extra de US $3 bilhões à Ucrânia. As coisas também não vão tão bem com os aliados transatlânticos: em março de 2023, as forças armadas da Europa foram descritas, por um artigo do Foreign Affairs,como estando em um “estado lamentável” - situação essa difícil de se escapar, considerando-se o quadro atual de uma Europa des-industrializada.
No mês passado, os EUA anunciaram que gastariam mais US$ 325 milhões para substituir os tanques destruídos pela Rússia durante a dispendiosa contra-ofensiva da Ucrânia - que se mostrou um desastre. Os duros custos econômicos e o esgotamento de arsenais, no entanto, não devem ser a única preocupação de Washington: desde 2020, apenas 23% dos jovens americanos (de 17 a 24 anos) se qualificam sem restrições ao serviço militar e a maioria dos jovens considerados inaptas é rejeitada por vários motivos, como obesidade, problemas de saúde e abuso de drogas.
Em seu artigo para The Atlantic, o ex-oficial do Exército dos EUA Jason Dempsey (pesquisador adjunto sênior do Center for a New American Security) e o ex-oficial Marine dos EUA Gil Barndollar (pesquisador sênior da Defense Priorities) pintam um quadro muito preocupante, de um ponto de vista americano. Completando agora cinquenta anos, a “força totalmente voluntária” (AVF - “All-Volunteer Force”, em inglês), como os militares dos EUA passaram a ser conhecidos depois da última conscrição (serviço militar obrigatório) em 1973, tornou-se, para Barndollar e Dempsey, “insustentável”: enfrenta ameaças em “três frentes” - ou seja, em relação ao custo, capacidade e, mais importante, “habilidade contínua de encontrar americanos em número suficiente dispostos e aptos a servir”.
Os salários e benefícios militares dispararam desde o 11 de setembro, na verdade aumentando em mais de 50%. Seu alto custo é um dos fatores que tornam as forças armadas americanas pequenas. Ao se deparar com campanhas de médio porte no Afeganistão e no Iraque, já era um desafio mobilizar tropas suficientes. Assim, Dempsey e Barndollar argumentam que o Exército americano poderia ser quebrado por qualquer “grande conflito”. Por exemplo, eles escrevem, apenas no último ano de confronto, a Rússia e a Ucrânia tiveram baixas iguais a pelo menos metade do Exército dos EUA na ativa, e a doutrina militar atual dos EUA diz que uma força é destruída depois de tomar 30 por cento de baixas. Em outras palavras, os próprios EUA não poderiam suportar o que sua aliada Ucrânia atualmente aguenta.
De qualquer forma, apenas 9% dos jovens cidadãos dos EUA pensam seriamente em entrar para o serviço militar, um número que está próximo do nível mais baixo de todos os tempos desde o início da chamada “força totalmente voluntária” (AVF). Para ampliar o alcance do recrutamento, os militares afrouxaram suas restrições sobre coisas como tatuagens no pescoço e outros padrões. Em junho do ano passado, o Exército dos EUA chegou ao ponto de suspender brevemente a exigência de ter diploma do ensino médio concluído. Mesmo assim, os militares dos EUA simplesmente não conseguem encontrar recrutas e continuam aquém de suas cotas de alistamento.
A crise da AVF faz parte de uma crise social maior - uma crise até mesmo civilizacional. Considere-se este fato: os cidadãos dos EUA hoje enfrentam a pior crise relacionada a drogas de todos os tempos, crise esta alimentada pelo abuso epidêmico de opioides. De acordo com a vice-editora do Conselho de Relações Exteriores (o CFR), Claire Klobucista, e com a especialista Alejandra Martinez, esse estado de coisas põe em risco a “saúde pública, a produção econômica e a segurança nacional” dos EUA. As drogas opióides (tanto medicamentos fabricados legalmente quanto narcóticos ilícitos) já são de longe a principal causa de overdoses fatais no país.
Ou considere-se ainda o seguinte: neste exato momento, o Subcomitê de Cuidados de Saúde e Serviços Financeiros dos EUA diz que a agência Food and Drug Administration (FDA) ainda está se esquivando de fiscalizar e de fornecer explicações sobre uma crise contínua de escassez de fórmulas infantis para a alimentação de bebês. E mais: mesmo sendo supostamente a nação mais rica do mundo, o sistema de saúde dos EUA está em colapso, com hospitais fechando, instalações superlotadas e com falta de profissionais e falta de itens como leitos de UTI. O país também enfrenta uma crise de saúde mental, com 40% dos pais relatando que seus filhos lutam contra a ansiedade ou depressão, entre outros problemas.
Dados todos esses problemas domésticos e sistêmicos, não é de se admirar que a maioria dos jovens não se qualifique para o serviço militar ou não queira fazer parte das forças armadas. Considerando que muitos jovens, devido a vários fatores, simplesmente são inaptos para o serviço, trazer de volta o recrutamento obrigatório de conscritos (com todos os custos políticos) simplesmente não resolveria o problema. Esta é uma das razões pelas quais os EUA precisam cada vez mais travar guerras por procuração (guerras “proxy”).
Em novembro de 2022, ao discursar na reunião anual da Liga Submarina Naval em Arlington, Virgínia, o almirante da Marinha dos EUA Charles Richard, então chefe do Comando Estratégico dos EUA, disse o seguinte sobre a crise na Ucrânia: “este é apenas um aquecimento. Coisa grande ainda está por vir.” Ele acrescentou: “Não vai demorar muito para que sejamos testados de maneiras que não fomos já faz muito tempo”. Na época, ele exortou os formuladores de políticas públicas e os chefes do Pentágono a retornarem ao dinamismo dos anos 1950 e 1960 para enfrentar esses desafios.
Esses são apelos ousados e ambiciosos para uma superpotência em declínio, sobrecarregada e com poder excessivamente projetado pelo globo, que está buscando ativamente uma política de contenção dupla contra a Rússia e a China simultaneamente. Além disso, busca manter sua hegemonia naval como potência marítima, ao mesmo tempo em que trava guerras terrestres como parte de algo análogo à luta pelo Heartland de Mackinder. Esta potência, como o famoso pelicano do meme, parece querer tudo. No entanto, apetite e capacidade são duas coisas diferentes. Resta saber se a sociedade americana continuará ou não sendo capaz de sacrificar o que é preciso para tudo isso e por quanto tempo. No momento, a perspectiva não parece boa.
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