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O mundo não é videogame: contra o nacionalismo que faz parecer que o Brasil é simples



Muitos se apegam à pergunta "Cui buono" para analisar os eventos. Mas esse método, que é útil na investigação criminal comum, pode ser enganoso quando transposto para um âmbito muito diferente, o das articulações e atividades políticas.


O sistema político das sociedades modernas é complexo e abrangente demais para supor que um dos lados em disputa manipule os lances dos adversários, como se tudo não passasse de um grande teatro de marionetes. As agências políticas são múltiplas, diversificadas, quase caóticas, e ocorrem em patamares de atividade e poder distintos. Ninguém domina o cenário por completo.


Alguns dos "jogadores" estão melhor posicionados do que os demais. Acumulam mais poder, têm mais raio de ação e podem, inclusive, antever melhor os lances. Mas nunca têm raio de ação ou antevisão suficiente para estabelecerem um poder absoluto sobre o "tabuleiro". Há erros, contingências, certa aleatoriedade, forças incontroláveis e muitos acordos para minimizar os riscos.


Saber disso é o básico necessário para escapar de toscos conspiracionismos, monomanias, reducionismos e explicações simplórias para os eventos políticos. Infelizmente, o meio nacionalista-popular está repleto de abordagens ingênuas.


Que os bolsonaristas radicais tentariam um golpe era 'jogada' cantada há anos. Bolsonaro flerta com o golpe desde sempre. Seus filhos desdenhavam do STF, dizendo que poderia ser fechado com "um sargento e um jipe". Seus apoiadores realizavam performances diante da Corte Suprema e do Congresso, pedindo intervenção militar e prisão de Ministros.


Há anos está claro também que qualquer tentativa de golpe vinda de Bolsonaro seria um fracasso. Ele não tinha o poder, a disposição, a capacidade de articulação política nem a correlação de forças necessária para fechar o sistema. Daí não se tira que ele não fosse tentar, de forma mambembe, bisonha, algo teatral, e do modo fanfarrão e algo patético que caracterizou sua Presidência, marcada por declarações circenses em um "cercadinho" e em lives em redes sociais.


Concluir daí que a tentativa de golpe foi uma farsa plantada pelo governo é pura miopia. Houve sim uma tentativa, que por ser frustrada e previsível, fortaleceu outros agentes, pelo menos no curto prazo. Favoreceu principalmente a tutela da República pelo Poder Judiciário, que vem ganhando a disputa com as Forças Armadas pelo papel de Moderador de um regime em profunda crise de legitimidade.


Esta crise tem sua fonte no fracasso econômico, social e espiritual da Nova República estabelecida em 1988. O pacto de poder que "liberalizou" o sistema político no fim do Regime Civil-Militar entregou quatro décadas de crescimento pífio, marcados por desindustrialização em um país que, pela primeira vez em sua História, era esmagadoramente urbano e com dezenas de milhões de habitantes concentrados em regiões metropolitanas.


O Brasil se tornou um país de favelas, territórios controlados por máfias de jogos e de tráfico de drogas e armas, de violência urbana arrasadora, e de iníqua concentração de renda e de propriedade, um paraíso de uma alta burguesia financeirizada. Enquanto isso, a elite intelectual se apartava completamente da população, de qualquer busca pela construção de um Estado baseada nas identidades populares. O Brasil Oficial tomou o aspecto de um governo de estrangeiros cosmopolitas, uma caricatura de pessoas que emulam o Norte Geopolítico. A população não se reconhece nesta elite.


Os primeiros sintomas mais agudos de que o esgarçamento social engoliria a Nova República foram respondidos pelo sistema com uma busca desenfreada por tutelar a "democracia". O principal alvo é a Presidência da República, instância mais democrática das esferas de Poder por ser eleito por voto direto e ser herdeiro da imagem imperial em um país de ethos político incontornavelmente personalista.


A tutela do Poder Judiciário começou com o lavajatismo. Um juiz de primeira instância criou um novo foco de poder, a República de Curitiba, e emparedou as instituições com grande apoio da grande mídia. Parte do sistema político-partidário reagiu em torno de Temer por puro instinto de sobrevivência. Mas o processo, em vez de destronar o Poder Judiciário, mudou o exercício de seu poder da primeira para a última instância. Em vez de um "tenentismo jurídico", o "generalato" da Justiça no STF. O próprio Temer criou condições para este cenário ao indicar para a Corte Suprema Alexandre de Moraes, advogado com vínculos políticos com a cúpula do MDB e do PSDB paulista, e que tem um trânsito singular na Polícia Federal.


Como no lavajatismo, a grande mídia se abraçou aos novos tutores. O novo sistema é agora chamado de Democracia Militante, justificativa teórica retirada de Karl Loewenstein. Segundo seus defensores, o regime é necessário para evitar a ascensão do "fascismo". Para evitar essa forma de autoritarismo, seria necessário um autoritarismo de tons sociais-liberais, apoiado pela grande mídia e pela Faria Lima. Neste momento, a liberdade de manifestação nas ruas e na redes sociais sofre as maiores restrições em décadas no país. O Ministro Gilmar Mendes dá entrevista na Rede Globo declarando que o direito de reunião deve ganhar novos contornos constitucionais, a fim de evitar o "perigo" em um mundo com internet; e que a autoridade policial da capital da República deve ser fortalecida. Este mesmo Ministro, em discurso similar a outros da Suprema Corte, defendeu o estabelecimento de um semi-presidencialismo sob supervisão do STF.


O problema da Nova República não é a ressurreição de Hitler e Mussolini, de todo impossível. E sim sua fragilidade ideológica, a desconfiança com que suas instituições são encaradas pela população, a descrença dos brasileiros nos valores sociais-liberais e no progressismo "identitário" que são os dogmas vigentes do Brasil Oficial, e que sustenta uma estrutura de parasitismo rentista cujas bases são profundamente nacionais, ainda que se articule também com o Imperialismo.


Um país continental como o Brasil pode conviver com regimes mais abertos ou mais autoritários. Mais um regime ilegítimo vai fracassar, seja ele aberto, seja autoritário. Fechar o sistema em torno do STF, e mais ainda em torno de um dos Ministros da Corte, que cumpre o papel de um Felinto Muller de uma República sem Getúlio, a figura caricata do Poder Moderador de "Império" Civilista de teor social-liberal, passa longe de resolver a crise de legitimidade em que estamos mergulhados.


O poder que se concentra no Judiciário, no STF e em Alexandre de Moraes tende a se voltar contras essas instâncias. A necessária prisão de Bolsonaro e de sua trupe pelos crimes que não cansam de vir à tona e pela frustrada tentativa de golpe não coloca fim à crise de legitimidade. Pelo contrário, cria possibilidades concretas para que ela se expresse de modo ainda mais forte porque livre do circo bolsonarista.


A reação a essas distorções institucionais, desses desvios do arcabouço constitucional, deve partir do Executivo por uma simples razão: é o Poder que goza de vínculo direto com a população por meio do voto e do imaginário político.


O Brasil precisa de um Estado e de um sistema político em que o povo se reconheça, em que se sinta representado. Só uma Democracia Social fundamentada em nossa cultura política e um país industrializado, com independência econômica, e com distribuição de propriedade pode nos tirar do aparente beco sem saída em que nos encontramos.




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