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Ainda a arte de importar problemas (parte 3) ou: o Islam, a pedofilia e o Ocidente

Escrevi antes (leia aqui) sobre como, por anos, a direita anglossaxônica tem disseminado certos discursos sobre o Islam (nesse aspecto sendo imitada pela direita brasileira). O que alegam é que se trata de uma religião por natureza "pedófila" ou "favorável à pedofilia" (e, mais ainda, escravizadora de mulheres, bárbara etc). Será que essa afirmação é coerente? Sem mais delongas, considere o seguinte:



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Cenas urbanas no Irã
Cenas urbanas no Irã

  • 1. A "idade de consentimento", por lei, para meninas, na Síria, é de 15 anos, um ano a mais do que no Brasil. Em países muçulmanos como os Emirados Árabes Unidos, Egito, Marrocos, Arábia Saudita, Cisjordânia (Palestina), Turquia e Líbano, é 18. No Brasil é, novamente, de 14 anos, como veremos abaixo.

  • 2. Vamos direto a uma das questões mais citadas pela direita de língua inglesa: Aisha, esposa do Profeta dos muçulmanos, Mohamed (Maomé). Aisha, que foi uma comandante militar e líder política, casou-se com o Maomé bastante nova, em contexto tribal semita da Antiguidade, não tanto tempo depois do fim da Idade do Ferro (estamos falando do século 7). Ele foi prometida em casamento aos 5 anos, mas não se sabe ao certo quando o matrimônio foi consumado, pois há problemas e divergências quanto ao cálculo e calendário usado na época. A data mais provável é em torno de 13 anos de idade[13]

    "The Lives of Muhammad", Kecia Ali. Harvard University Press
    "The Lives of Muhammad", Kecia Ali. Harvard University Press

  • 3. Não é crime ter relações com meninas de 14 anos no Brasil. De fato, no Brasil hoje (2024), a chamada “idade de consentimento” é de 14 anos. Isso significa que, se um maior de idade tiver relações sexuais com alguém de menos de 14 anos de idade, trata-se de “estupro presumido” (art. 217-A, do Código penal). Em se tratando de maior de 14 anos, porém, a princípio não há necessariamente crime algum, no ordenamento jurídico brasileiro - e, pelo princípio da legalidade (que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina), tal relação só será crime em algumas situações muito específicas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como nos artigos 232, 238 etc. Em alguns casos (controversos), a jurisdição brasileira entendeu até que, mesmo a menina tendo menos de 14 anos, não havia crime algum. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em 2024, que não cometeu crime o sujeito de 20 anos que engravidou uma menina de 12 anos, por exemplo[14]. Note que não estou dizendo que concordo com tudo isso - estou apenas informando aqui como são as coisas no Brasil. Ressalto ainda que, antes de 2005 havia, no Brasil, extinção da punibilidade pelo casamento: isto é, se o sujeito se casasse com a menina (menor de 14 anos), a pena seria anulada[15]. E note que, em boa parte das comunidades tribais brasileiras, o casamento aos 12 anos (para menina) é comum hoje[16].

  • 4. O Islam nasceu em meio a tribos semitas à época consideradas “semi-bárbaras” por civilizações como a grega, a persa etc. Eram pessoas do deserto da Península Arábica, que viviam uma vida dura e brutal. Foi a partir desse material humano que Mohamed (o Profeta Maomé) e os místicos e líderes islâmicos ajudaram a construir, desnecessário dizer, algumas das civilizações mais culturalmente sofisticadas que já existiram (no auge de seu florescimento), como sabe qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento histórico; mas também é verdade que boa parte desse período inicial envolve situações de extrema pobreza e vidas curtas.

  • 5. Para além do Islam, historicamente, a maioria das santas e princesas cristãs se casou com menos de 15 anos de idade (no tocante às santas e mártires cristãs, refiro-me, obviamente, às santas que se casaram, não às celibatárias, monjas ou as que morreram virgens). Ora, para a Igreja Católica, até 1971, a idade mínima para o casamento, para meninas, era de 12 anos - isso foi adaptado do Direito Romano no Direito Canônico da Igreja. A rainha Judite de Flandres casou-se aos 12 anos, por exemplo. Fora da cristandade, na Ásia, a Imperatriz Xiaojingxian, de Manchu, em 1691, casou-se aos 9 anos de idade, o que é ainda mais chocante. Voltando ao Ocidente cristão, a Rainha Beatriz de Vermandois, mais ou menos um século depois de Aisha, casou-se aos 10 anos de idade. A Rainha Gisela da Hungria, por sua vez, casou-se com cerca de 11 anos (em 996). Já em 1729, a Infanta Mariana Vitória de Bourbon casou-se aos 10 anos de idade com José, Príncipe do Brasil (que, por sua vez, tinha quatorze anos de idade - mais tarde, tornou-se Dom José I de Portugal) - porém aparentemente o casamento foi consumado quando ela tinha 14 etc etc etc.

    "Noivados [sponsalia] requerem a idade de sete anos completos nas partes contratantes. A idade para casar é de quatorze anos completos no caso dos homens e doze anos completos no caso das mulheres, sob pena de nulidade (a menos que a puberdade natural venha a suprir a falta de idade)" - Fonte: Enciclopédia Católica
    "Noivados [sponsalia] requerem a idade de sete anos completos nas partes contratantes. A idade para casar é de quatorze anos completos no caso dos homens e doze anos completos no caso das mulheres, sob pena de nulidade (a menos que a puberdade natural venha a suprir a falta de idade)" - Fonte: Enciclopédia Católica

  • 6. Os casos de pedofilia envolvendo clero católico romano são tão endêmicos e notórios que, infelizmente, não preciso sequer citar números e dados - mas nem por isso seria honesto argumentar que seja algo intrínseco à religião católica (apesar dos dados acima).

  • 7. Moisés, Abraão, Davi e vários Profetas e Patriarcas da Bíblia (venerados por cristãos, judeus e muçulmanos) tiveram mais de uma esposa e tiveram concubinas, escravas, bem como servos e escravos (seria cansativo citar vários versículos aqui). Nós não vemos, contudo ninguém (senão ateus militantes, mas eles não contam) colocando o dedo na cara de cristãos ou muçulmanos e exigindo que eles se expliquem sobre Moisés!

  • 8. O Rei Amom de Judá foi coroado rei aos 22 anos, após várias intrigas; reinou por dois anos. Os reis bíblicos antes dele foram coroados e atuaram como co-regentes a partir dos 12 anos de idade, em média. No Brasil, Dom Pedro II foi declarado maior de idade em julho de 1840, aos 14 anos, e, com essa idade, começou a reinar. Hoje, pessoas de mais de dezoito ou até mais de vinte anos pedem para que os pais os acompanhem em entrevistas de emprego, o que mostra como questões históricas e culturais afetam comportamentos e noções de maturidade.

  • 9. A Common Law inglesa já prevê o reconhecimento de cortes islâmicas muitos anos antes de existir um movimento "woke" - mas geralmente só para questões familiares ou do que chamaríamos de "direito civil” - nenhuma delas permite a pedofilia. O Reino Unido é uma entidade política plurinacional por definição (abrangendo irlandeses, escoceses, galeses, ingleses) e esse tipo de diversidade jurídica faz todo sentido do ponto de vista da tradição de direito consuetudinário britânica, que se baseia nos costumes das populações. Aliás, há muito tempo existem cortes judaicas rabínicas no Reino Unido também, em situação muito parecida com a das cortes islâmicas[17].

  • 10. Se formos citar trechos de Escrituras de forma seletiva ou desonesta, existem vários problemáticos no Talmud[18] [19], que é a codificação rabínica da lei judaica, análoga ao Hadith islâmico ou às Bulas e Encíclicas papais dos católicos romanos (e, além dos textos, existem também diversos casos de práticas, em se tratando de alguns grupos fundamentalistas judeus, a ponto do problema ser considerado uma “epidemia”[20] [21] [22] [23] - ora, fundatamentalistas e extremistas existem em todas as religiões). Tanto é assim que antissemitas pintam e bordam com esses dados, para retratar judeus religiosos como pedófilos, exatamente como os islamofóbicos fazem com muçulmanos.

Talmud
Trechos dos textos religiosos judaicos que anti-semitas, fora de contexto e sem exegese, citam para difamar a fé judaica - trata-se de uma discussão jurídica e de aplicação da Lei.
  • 11. Problemas envolvendo certa cultura de leniência com abusos sexuais (em setores da população) parecem ser um problema grave na Índia, país vizinho do islâmico Paquistão. Ora, a Índia é de maioria hindu e não muçulmana, mas não costumamos ver a espiritualidade sânscrita sendo acusada de ser pró-pedófila... 

  • 12. O Brasil, de maioria católica, com crescente população evangélica, figura, infelizmente, em lugar de destaque em todos os rankings de pornografia infantil (quinta posição), tráfico de mulheres e crianças e estupro. Existem ecos disso em alguns setores de certas culturas regionais, onde narrativas sobre o “boto” mítico ou folclórico funcionam por vezes como espécie de código ou fachada para se referir a práticas incestuosas e/ou pedofílicas. Curiosamente, uma atitude de simpatia ou apologia em relação a estupro e pedofilia existe fortemente na subcultura “channer e mesmo incel, “redpill” etc, como é visível nos fóruns masculinistas e parte da alt-right: para além de gôsto duvidoso em se tratando de animes, são memes e expressões-código envolvendo “novinhas”, “amorzinho”, “guerreiros da real”, “white sharia” e barbaridades do gênero. O curioso é que são justamente esses grupos aqueles que mais repercutem discurso anti-islâmico com denúncias de… pedofilia (mas só contra muçulmanos, por algum motivo). 

  • 13. No Afeganistão (vizinho do Paquistão), existe, entre algumas elites, uma prática cultural tribal chamada “bacga bazi”. É comum ouvir falar dela em fóruns conservadores e ela envolve a prostituição e abuso pederástico de meninos adolescentes dançarinos. Ocorre que é uma prática condenada pelo Islam e que foi proibida[24] pelo Talibãs ‭‬assim que este grupo islâmico chegou ao poder. É difícil eliminá-la, contudo, porque existem redes de pedofilia/pederastia e vários líderes tribais aristocráticos, warlords e poderosos têm envolvimento (o que lembra muito a Inglaterra e o Ocidente em geral, como vimos na parte 2 deste texto).


***


As considerações todas que fiz acima (se alguém teve paciência de ler até aqui) ajudam a dar um pouco de contexto a casos de pedofilia envolvendo gangues paquistanesas no Reino Unido, país famoso por acobertar a pedofilia de sua elite (parte 2) e a dar um pouco de contexto a discursos sobre a religião islâmica. Seja como for, feministas enragés e liberal-conservadores da nova direita, irmanados em histeria, continuarão, de dedo em riste e em comportamento de turba, a promover o cancelamento de certas pessoas meramente por professarem a religião muçulmana. Eles literalmente acreditam que todo muçulmano é um decapitador e pedófilo em potencial. Por que eles não assediam dessa maneira judeus religiosos (vide os itens 5, 7 e sobretudo 10, acima), permanece sendo um mistério. Ou não: a verdade é que os liberal-conservadores simpatizantes da alt-right gostam de lacração politicamente incorreta (a lacração de sinal trocado); gostam de polêmica religiosa panfletária e de literatura racista e alarmista sobre QI e criminalidade, mas apenas quando tudo isso se refere a indígenas, negros, árabes, povos do oriente médio em geral (menos judeus) e a muçulmanos. Embora consumam memes e clichês nazistoides da Alt Right (sapo Kek etc), eles são fãs do identitarismo vitimista politicamente correto de alguns grupos judeus e mais fãs ainda do ultranacionalismo sionista, como já mencionei em texto anterior. São pessoas complexas, enfim. 


Em suma, existem grupos de direita populista europeia, britânica e americana, de Alt Right e similares que promovem algumas das narrativas islamofóbicas que mencionei (não dá pra descrever de outro jeito) bem como a informação falsa de que a religião muçulmana como um todo promove a pedofilia (!!!) - em fazer tudo isso, está envolvida uma boa dose de anacronismo, citação seletiva de Escrituras (ignorando-se as Escrituras sagradas de judeus e a Bíblia Sagrada dos cristãos) assim como bater na tecla de Aisha (que já mencionei acima). Ora, todos esses grupos de “nova direita” que citei, sobretudo os britânicos e norte-americanos dos EUA, não querem tampouco saber de migrantes brasileiros lá em seus países e nem muito menos querem saber de mestiçagem ou de pessoas miscigenadas, como é o caso de boa parte dos brasileiros de qualquer forma. Tais cavalheiros, desnecessário dizer, também não consideram brasileiros ocidentais - não muito mais do que paquistaneses. Por que uma parte da direita brasileira sentiria necessidade de papaguear a retórica desses grupos, num país latino-americano que nunca teve problemas com muçulmanos nem com terrorismo islâmico e nem com indianos ou paquistaneses, é um mistério. A resposta deve envolver o tal complexo de vira-lata, mais aqueles problemas culturais e psicológicos ou psiquiátricos que hoje, infelizmente, são o bloco construtor das militâncias políticas. A arte de importar e criar problemas, como vemos, chega a requintes indescritíveis.



Notas:

  1.  "The child rape scandal dominating UK politics after Musk criticism", Kate Holton, Reuters, 6 de jan. de 2025

  2.  Vide, por exemplo, “Grooming gang convictions '84% Asian', say researchers”. Sally Lockwood, Sky News, 10 de dez. de 2017

  3.  “British South Asian communities and drug supply networks in the UK: A qualitative study". Vincenzo Ruggiero & Kazim Khan (doi:10.1016/j.drugpo.2006.03.009), 2006.

  4.  '”Everyone knew' about Jimmy Savile, former officer says”. Danny Savage, BBC News, 17 de out. de 2013

  5.  “Homosexual prostitution inquiry ensnares VIPs with Reagan, Bush”. Paul M. Rodriguez & George Archibald, The Washington Times, 29 de jun. de 1989.

  6.  "Six more bodies feared buried in Jersey home". Helen Pidd, Guardian, 25 de fev. de 2008

  7.  “Belgium's silent heart of darkness”. Olenka Frenkiel, Guardian, 5 de maio de 2002

  8.  “The Westminster child abuse ‘coverup’: how much did MPs know?” Michael White, Guardian, 17 de mar. de 2015

  9.  “British politicians covered up child sex abuse for decades, inquiry finds”. Elizabeth Howcroft, Reuters, 25 de fev. de 2020

  10.  “Fact Check: Did Elon Musk Visit Jeffrey Epstein After Release From Prison?”. Newsweek, 9 de nov. de 2022.

  11. The German experiment that placed foster children with pedophiles”. Rachel Aviv, The New Yorker, 19 de julho de 2021

  12.  “How did the pro-paedophile group PIE exist openly for 10 years?”. Tom de Castella & Tom Heyden, BBC News, 27 de fev. de 2014

  13.  Como fonte, vide o livro "The Lives of Muhammad", de Kecia Ali, da Harvard University Press, 2014.

  14.  Cf. "STJ afasta estupro em caso de menina de 12 anos que engravidou", Felipe Pontes, EBC, 14 de mar. de 2024

  15.  Lei Nº 11.106, de 28 de mar. de 2005 - ela revogou o artigo 107 do CP (inciso VII).

  16.  “De acordo com a pesquisa [da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)], quase 30% das mulheres indígenas que deram à luz entre 2008 e 2019 tinham entre 10 e 19 anos” Fonte: "Indígenas são as mais afetadas por gravidez na adolescência e casamento infantil", Redação Marie Claire, 2023

  17.  "The Beth Din: Jewish Law in the UK", Henry Jackson Society, 4 de jan. de 2009

  18.  Há trechos das leis judaicas que parecem dar a entender que relações sexuais com crianças de 9 anos ou até menos seriam permitidas; vide a discussão em Sanhedrin.54b.19-23, que fora de contexto, lê-se assim: “if a child who is less than nine years old engages in homosexual intercourse passively, the one who engages in intercourse with him is not liable” (disponível on-line, em inglês e no original em: <https://www.sefaria.org/Sanhedrin.54b.20?lang=bi&with=all&lang2=en>)  - são trechos bastante citados em discursos anti-semitas. Cf. ainda Tosafoth (Kiddushin 41:a) e (1530-1572) (e HaEzer 37).

  19. Como contraponto ao exposto acima na nota 18, vide "The Talmud Does Not Permit Sex With A Three Year Old", Gil Student, in: talmud.faithweb.com 

  20.  Vide "Reporting of Sexual Assault and Abuse of Males in the Ultra-Orthodox Jewish Community", CUNY Academic Works, Yevgeniy Pastukhov Semchenkov, 2020

  21. Cf. também “Guatemalan Officials Raid Compound of Jewish Sect and Remove Dozens of Minors”, Emiliano Rodríguez Mega & Jody García, New York Times, 20 de dez. de 2024.

  22. Vide ainda: "Israel: Is this an ultra-Orthodox MeToo moment?", BBC News, 22 de set. de 2022;

  23. Vide também "The Plight of Children at Risk in the Ultra-Orthodox Jewish Communities and the Failure of Government and Pandering Politicians to Protect Them", Marci A. Hamilton, Verdict, 17 de set. de 2015

  24. “The practice was banned under the Taliban, who implemented a strict form of sharia law.” Fonte: "Bacha bazi: the scandal of Afghanistan’s abused boys". The Week, 29 de jan. de 2020


Curiosidade: uma versão deste texto foi rejeitada para publicação alhures.


As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria


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