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Alguns mitos sobre Mercado e Estado ou: A Nova Direita é anarquista?

Existe um imaginário relativamente bem difundido entre setores da direita, que podemos chamar de "imaginário neoconservador": para este. tudo o que hoje falta - e falta tanta coisa! - à população pobre [a saber, educação, saúde, segurança etc] é (ou deveria ser) fornecido pelo Estado, enquanto que, segundo o mesmo imaginário, o pouco que a população pobre consegue ter [computadores, internet, um smartphone] só está disponível a ela inteiramente graças ao "Mercado". Assim, teríamos um mítico Mercado que tudo dá, contrastando com um Estado quase inútil. A conclusão que se pode deduzir dessas premisas (se levadas a sério) conduziria, com efeito, a um tipo de anarquismo capitalista. As coisas, contudo, não são bem assim - longe disso.



O moderno mundo tecnológico em que vivemos foi criado pelos militares e pelo Estado, em parceria ou não com atores do setor privado

Ora, o irônico é que os três exemplos dados (internet, smartphones e computadores) representam, justamente, o contrário do que esse imaginário supõe. Na verdade. todo o pesado investimento em tecnologia e inovação (Pesquisa e Desenvolvimento - P&D) vem do Tesouro do Estado. A retórica e institucionalidade [da China, Alemanha ou EUA] podem mudar, ora com mais presença explícita do Estado (é o caso da China e seus mais de 120 gigantes conglomerados estatais fazendo aquilo que se chama hoje de "socialismo de mercado"] [1], ora com tal presença sendo camuflada via Ministério da Defesa sob o pretexto de corrida aeroespacial e disputa tecnológica (é o caso dos EUA). Podemos até mesmo dizer que existe um Estado Desenvolvimentista de facto camuflado nos EUA, um país que gasta em média US$ 850 bilhões no Complexo Militar de Defesa.



Trata-se de setor da economia [P&D] com grau de incerteza tão elevado que nenhum empresário quererá correr, sozinho, o risco de ter prejuízos altíssimos. Investir em P&D certamente não é como investir em uma padaria, cujo lucro já vem no [ou se deseja para o] mês seguinte.


A história do desenvolvimento econômico, portanto, prova que andam lado a lado o Estado, as universidades e o mercado lá na ponta para absorver e difundir esses produtos quando atingem sua maturidade tecnológica

O GPS, por exemplo, foi criado pelo Exército norte-americano, como lembra Ha-Joon Chang [2], renomado economista da Coreia do Sul (quando compramos um celular, aliás, parte do valor é direcionado como royalties ao governo dos EUA); as peças que integram um iPhone são em quase sua totalidade oriundas ou de pequisa feita diretamente por universidades ou de fundos públicos de fomento à pesquisa (como aborda, em seu livro, Mariana Mazzucato) [3]; a internet, porsua vez, foi criada e desenvolvida, ainda na segunda guerra mundial, pelo governo dos EUA. Sim, os protocolos [HTTPS etc] também estão nesse pacote, pois são frutos de estudos matemáticos muito abstratos e complicadíssimos que demandam muito tempo para serem revertidos em produto de uso civil.



A expansão gigantesca da linha ferroviária chinesa, claro, teve papel decisivo de investimento público, ao ponto de 50% do funding que permitiu a construção de 300 km da linha de metrô em Xangai, entre 2000 e 2018, terem sido financiados por um banco de desenvolvimento municipal. [4] Já o agronegócio do Brasil ganhou a escala gigantesca que tem hoje, já estando na fronteira agrícola mundial, justamente pelo financiamento de empresas públicas como Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Caixa Econômica Federal e pelo papel decisivo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), uma empresa pública, graças à qual o Brasil pôde realizar façanhas como plantar soja no cerrado ou desenvolver, em Alagoas, a tecnologia de algodão colorido (presente em roupas, mesas, tapetes etc). Aliás, é bom lembrar que tanto o agricultor europeu quanto o norte-americano dos EUA são quase "funcionários públicos" por estarem, como estão, inseridos em um setor fortemente subsidiado pelo Estado, como lembra este nacionalista brasileiro, Aldo Rebelo [5].


A história do desenvolvimento econômico, portanto, prova que andam lado a lado o Estado, as universidades e o mercado lá na ponta para absorver e difundir esses produtos quando atingem sua maturidade tecnológica. Esse processo de aquisição de conhecimento e sua transformação em aparatos produtivos é o que faz países ricos serem ricos, e países pobres serem pobres, dentro da dinâmica da divisão internacional do trabalho. Estar na fronteira agrícola é importante, mas não é suficiente. O Brasil é um excelente exemplo de país que, embora seja potência agrícola, deteriorou seu aparato produtivo ao ponto de termos regredido ao patamar pré-1930.



Muitas pessoas estranharam o fato de que, tão logo se anunciou a difusão da tecnologia 5G, já havia notícias sinalizando o surgimento, em um futuro breve, da tecnologia 6G. Ora, este exemplo confirma o processo de transição entre o domínio tecnológico e a absorção das descorbertas para o uso civil pelo mercado, e, na vanguarda deste processo, pesquisas vultosas já sendo feitas com muito dinheiro público para o próximo passo. Quando, enfim, a tecnologia 6G for absorvida para o mercado difundi-la, certamente a internet 7G (ou uma outra tecnologia descoberta dentro deste processo de aquisição de conhecimento) já estará sendo desenvolvida. É o que o economista alemão Joseph Schumpeter chamou de "destruição criativa" [6], a qual o Estado Nacional é inevitavelmente chamado a comandar.


Quando se diz, portanto, que esses produtos tecnológicos (o smartphone, a internet etc] são "dados" pelo "Mercado" (e pela dinânima iniciativa de empreendores), o que se tem é a ponta de um iceberg: trata-se, na verdade, da dinâmica do processo de desenvolvimento econômico, que pressupõe contribuição de toda a sociedade - como é natural em qualquer civilização complexa. É evidente que é uma empresa que os vende ao público consumidor (e não há problema nisso), mas não é tão evidente assim o processo oculto do seu surgimento e desenvolvimento.


O fato é que a neodireita (antípoda natural da chamada "new left", com quem se parece tanto, o que é tema para, quem sabe, um outro texto), paradoxalmente, já nasce velha: ela combate, no fundo, o estereótipo daquela economia totalmente planificada da velha URSS, como se o Estado tivesse, de acordo com tal estereótipo, que controlar até a produção de excedentes do padeiro, o que evidentemente não é do que trata este texto.


Notas :


[1] JABBOUR, Elias. China : socialismo e desenvolvimento sete décadas depois. 2 ed. São Paulo: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2020.

[2] Disponível em: https://youtu.be/WKNC1VnxQis?si=vESYigfwVpW8SZ3u. Para uma [boa] desconstrução do mito segundo o qual países ricos ficaram ricos porque simplesmente adotaram práticas de livre mercado, cf. CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada : a estratégia do desenvolvimento econômico em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

[3] MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor : desmascarando o mito do setor público x setor privado. Tradução de Elvira Serapicus. 1 ed. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

[4] JABBOUR, Elias. China : socialismo e desenvolvimento sete décadas depois. 2 ed. São Paulo: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2020, p. 79.

[5] REBELO, Aldo. O Quinto Movimento : propostas para uma construção inacabada. Porto Alegre: Jornal JA Editora, p. 128.

[6] SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo, Democracia. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2022.

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