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As fontes de Plotino

A discussão que trata da relação da filosofia de Plotino e o platonismo se inscreve no contexto mais amplo das relações entre Plotino e o pensamento dos filósofos que o antecederam. Para Maria Gatti, Plotino reúne, em sua obra, “o legado de quase oito séculos de filosofia grega” e constrói de forma magnífica uma nova síntese.


Dentre os filósofos citados nas Enéadas identificamos apenas alguns nomes que pertencem ao período helênico: Pitágoras, Ferécides, Heráclito, Empédocles, Anaxágoras, Platão, Aristóteles e Epicuro. Não obstante, as citações indiretas e alusões são muito mais abrangentes e numerosas, e, juntamente com as informações biográficas, nos permitem aprofundar de maneira significativa o conhecimento acerca das fontes de Plotino porque nos possibilitam investigar e reconstruir as posições de seus antecessores.


"A respeito da influência da obra aristotélica em Plotino cabem aqui algumas considerações. Ainda que a filosofia de Aristóteles seja criticada nas Enéadas, especialmente em relação à sua concepção do primeiro princípio, identificado com o intelecto divino, as doutrinas do estagirita são fundamentais para a elaboração conceitual da segunda hipóstase, identificada com o Intelecto (Nous) aristotélico; para as discussões sobre a alma; sobre as categorias e vários aspectos da física".

Dentre essas influências possui lugar de destaque o pitagorismo, em especial por seus conceitos acerca dos princípios e números, as doutrinas antropológicas, tanto aquelas de viés ascético quanto religioso. É importante mencionar também a influência de Parmênides, com sua doutrina da identidade entre ser e pensar — fundamental para a segunda hipóstase de Plotino; Platão, sobretudo os aspectos místico, teológico e metafísico de seus ensinamentos.


Os diálogos platônicos citados nas Enéadas são: Fédro, Filebo, República, Banquete e Teeteto. Contudo, o filósofo de Licópolis faz referências indiretas também a Alcebíades, Apologia de Sócrates, Crátilo, Epínomes, Fédon, Filebo, Górgias, Ion, Hípias Maior, Leis, Minos, Parmênides, República, Protágoras, Político, Banquete, Sofista, Teeteto, Timeu e às segunda e sétima cartas.


Porfírio (c.234 — c.305 d.C.), o amigo e discípulo de Plotino que teria ficado encarregado pela edição das Enéadas, observa que o pensamento de Plotino está repleto de doutrinas estoicas e peripatéticas, ainda que não de maneira explícita. Além disso, afirma que a obra Metafísica, de Aristóteles, está condensada nos escritos do mestre (Life of Plotinus, 14).


A respeito da influência da obra aristotélica em Plotino cabem aqui algumas considerações. Ainda que a filosofia de Aristóteles seja criticada nas Enéadas, especialmente em relação à sua concepção do primeiro princípio, identificado com o intelecto divino, as doutrinas do estagirita são fundamentais para a elaboração conceitual da segunda hipóstase, identificada com o Intelecto (Nous) aristotélico; para as discussões sobre a alma; sobre as categorias e vários aspectos da física.


Os elementos da filosofia aristotélica presentes nas Enéadas fazem referência a Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Categorias, Da Alma, História dos Animais, Do Céu, Da Geração dos Animais, Da Geração e da Corrupção, Da Interpretação, Da memória e Reminiscência, Do movimento dos Animais, Do Universo, Das partes dos Animais, Da sensação e do sensível, Do Sono e da Vigília, Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco, Metafísica, Metereologia, Física, Política, Tópicos, e ainda diversos outros fragmentos.


Foram relevantes também os escritos dos sucessores de Aristóteles, denominados peripatéticos — em especial as obras do comentador Alexandre de Afrodísias (198–209 d.C.). Esses escritos tiveram um papel importante na formulação original do platonismo que viria a florescer com os neoplatônicos; Plotino não hesitou em incorporar os argumentos e a terminologia aristotélica em sua filosofia.


Como demonstram John Dillon e Lloyd Gerson, além da herança filosófica platônica e aristotélica, Plotino foi também herdeiro de séculos de filosofia estoica, epicurista e dos chamados céticos: escritos muitas vezes de um teor antiplatônico que, em diversas ocasiões, serviram como ponto de partida para o desenvolvimento dos argumentos que encontramos nas Enéadas. Gatti reitera a importância do renascimento do interesse em temas metafísicos, teológicos, espirituais ou ascéticos em Alexandria no período que vai do primeiro até o terceiro século d.C..


Nesse período, desenvolveu-se o pensamento dos chamados medioplatonistas, que viria a influenciar a metafísica e a concepção de natureza humana de Plotino.


Filo de Alexandria (c.20 a.C. — c.50 d.C.), um filósofo helenista judeu, foi o primeiro a conciliar elementos da filosofia tradicional grega e elementos próprios da cultura hebraica — sua influência foi importante para a filosofia plotiniana especialmente em relação aos “temas do logos, poderes espirituais, mundo inteligível e nas explicações sobre teologia e ascetismo místico” [tradução nossa][1]. Segundo Gerson, Filo de Alexandria “afirmava ter encontrado em Platão e nos estoicos o entendimento adequado da revelação do Antigo Testamento” [tradução nossa][2].


Outro aspecto importante a ser considerado quando falamos das fontes de Plotino é o ressurgimento da tradição pitagórica através dos pensadores denominados como neopitagóricos, tema que trataremos após alguns breves comentários acerca dos medioplatônicos.


Sabemos, através de Porfírio (Life of Plotinus, 14), que no início dos encontros da escola de Plotino fazia-se a leitura de textos filosóficos os quais serviriam como ponto de partida para as lições do dia. Os textos aos quais se refere Porfírio são os de Severo (fl. c.100 d.C), Ático (fl. c.175 d.C.), Caio (fl. c.200 d.C) Numênio de Apaméia (fl. c.200 d.C) e seu seguidor Crônio (fl. c.200 d.C.). Entre os peripatéticos são citados Aspásio (c.80 — c.150 d.C.), Adrasto (fl. c. 200 d.C) e Alexandre de Afrodísias.


Segundo Reale e Antiseri, as principais características do medioplatonismo são:


a) a retomada da conhecida imagem platônica da “segunda navegação”, isso é, a recuperação do suprassensível, o transcendente e o imaterial, o rompimento com o materialismo que havia se tornado preponderante; b) a reformulação da teoria das ideias, em alguns casos procurando integrar platonismo e aristotelismo; essa reformulação da teoria das ideias foi acompanhada por uma concepção igualmente diferente da estrutura do mundo metafísico; c) a tentativa de criar uma síntese e sistematizar a doutrina platônica estabelecendo como ponto de referência o texto do Timeu; d) a retomada da doutrina das Mônadas e das Díades do Platão esotérico; que teve maior importância para o movimento neopitagórico; e) a reproposição do problema ético; nos antípodas das concepções éticas materialistas e imanentistas da época helenística, a proposta dos medioplatônicos foi “assimila-te a Deus”, “imita a natureza divina” — a assimilação ao divino que transcende a natureza física das coisas se tornou a expressão máxima da vida moral.


Além dos medioplatonistas, faz-se necessário, como recém-mencionado, avaliar a importância que teve o reavivamento do neopitagorismo no período que antecedeu o surgimento do pensamento neoplatônico. Antes, porém, de uma síntese das principais características do neopitagorismo, convém assinalar alguns dos princípios fundamentais do pensamento pitagórico segundo a tradição.


De acordo com W. K. C. Guthrie, sabemos que “uma filosofia metafísica do Número” está ao centro do pensamento e dos ensinamentos de Pitágoras. No entanto, a concepção de Número que tinham os pitagóricos é “bastante diferente do entendimento predominantemente quantitativo que temos hoje” [tradução nossa][3]; para aqueles, o Número é uma realidade viva, qualitativa, que deve ser apreendida no âmbito da experiência, ao passo que o entendimento moderno encontra no número geralmente um signo para a representação de uma quantidade ou valor.


Para os pitagóricos, o número é um princípio universal e divino, fundamento de todas as coisas, tão real como a luz ou o som, por isso o objetivo da ciência pitagórica e da ciência platônica posterior é distinto do objetivo da ciência moderna “aristotélica”: as primeiras não estão fundamentalmente preocupadas com a investigação das coisas, mas dos princípios.


A Mônada ou a unidade é o princípio do número — os pitagóricos não entendiam o Um como um número, mas como um princípio (arché) que fundamenta o número. Nesse sentido, os números — em especial os dez primeiros — eram entendidos como diferentes manifestações de um continuum unificado.


Assim, o Um representa o princípio da unidade que é origem de todas as coisas, ao passo que o Dois representa a Díade, o surgimento da dualidade, do conflito, a possibilidade da relação entre Uma coisa e outra, isto é, a possibilidade do logos. A Díade representa a dualidade entre sujeito e objeto, aquele que conhece e o conhecido. Todavia, com a Tríade, a separação entre os dois termos encontra a sua reconciliação — o terceiro termo representa aqui uma relação ou harmonia entre os dois extremos.


Percebemos, portanto, a partir desse paradigma pitagórico, que a dualidade emerge da unidade e a posterior unificação dos dois primeiros termos surge através de um terceiro — esta sucessão, em realidade, corresponde a um paradigma arquetípico arcaico concebido para representar uma cosmogênese, um padrão metafísico que produz ou origina o mundo.


Cabe também apontar a importância, na doutrina pitagórica, dos dois princípios que configuram o cosmo ou a realidade fenomenal: a Matéria (o Indefinido), que é modelada pela Forma (Limite), respectivamente, apeiron e peras. Reale e Antiseri nos recordam que a escola pitagórica da antiguidade permaneceu ativa até o começo do século IV a.C.. Após um período de crise marcado em particular pela venda dos livros pitagóricos por parte de Filolau de Crotona (c.470 — c.385 a.C.), o pitagorismo viria a renascer, em princípio, devido a um conjunto de pseudoepígrafes de suposta autoria de filósofos pitagóricos. Mas o ressurgimento que merece maior atenção começa com Públio Nigídio Fígulo (98–45 a.C.), que refunda o pitagorismo como seita e escola.


Entre os nomes importantes do neopitagorismo metafísico (de orientação mística, em alguns casos) contam-se Moderato de Gades (c.50 — c.100 d.C.), Nicômaco de Gerasa (c.60 — c.120 d.C.), Numênio de Apaméia, Apolônio de Tiana (c.3 a.C. — c.97 d.C.) e Crônio.


Podemos sintetizar as principais características do que se convencionou chamar de neopitagorismo da seguinte maneira:


a) o redescobrimento e uma reafirmação do “imaterial” e do “incorpóreo”; b) diferentemente da ênfase na metafísica do Intelecto sustentada pelos medioplatônicos sob influência aristotélica e da metafísica das ideias platônica, entendem o incorpóreo a partir da “doutrina das Mônadas, das Díades e dos números”— os números representam princípios mais complexos, metanuméricos; c) há um novo desenvolvimento da doutrina das Mônadas e das Díades: ao invés da suprema dupla de opostos, a tendência é situar a Mônada como princípio absoluto, distinguindo a Mônada em “primeira” e “segunda” e contrapondo à Díade só a última; a totalidade do real passar a ser deduzida da Mônada suprema (alguns chamam de Uno à primeira, outros, à segunda); d) se dá pouca relevância à doutrina das ideias, que fica subordinada à doutrina dos números, entendidos teológica e teosoficamente ; e) defendem a doutrina da espiritualidade e imortalidade da alma e também recuperam a doutrina da metempsicose; o fim último do homem é a assimilação ao divino; f) a ética assume uma inclinação para a mística e a filosofia passa a ser vista enquanto revelação divina — a figura do filósofo é identificada com a de um ser próximo a um deus, ou um profeta que estabelece relações com as divindades superiores.


Por fim, dentre as principais fontes de Plotino, é preciso destacar a importância de seu mestre Amônio Saccas (c.175 — c.240 d.C.). Para Mark Edwards, não é possível determinar quanto da filosofia de Plotino é de sua própria autoria e quanto é herança de seu mentor Amônio. Plotino nasceu em 205 d.C., em Licópolis, no Egito, mas pouco se sabe de sua juventude — segundo Porfírio (Life of Plotinus, 1), Plotino dificilmente falava acerca de sua família e de sua terra natal.


Porfírio (Life of Plotinus, 2–3) nos relata que Plotino, já com vinte e oito anos, passou a interessar-se pela filosofia e foi à Alexandria escutar os professores de melhor reputação que lá ensinavam, mas acabou decepcionado com as lições. Um amigo a quem se queixava, percebendo o desejo de Plotino, levou-o até Amônio. Depois de ter comparecido à uma lição, Plotino disse ao amigo que, em Amônio, finalmente havia encontrado o que buscava — Plotino estudou com o mestre por onze anos, quando deixou Alexandria para juntar-se à expedição do imperador Gordiano em 243 d.C. Quando a expedição fracassou devido à morte do Imperador, Plotino escapou para Antioquia e, posteriormente, em 245 d.C., estabeleceu-se em Roma, onde iria lecionar praticamente até o final de sua vida.


Acometido por uma enfermidade, já com idade avançada, Plotino retirou-se para a região da Campânia, onde veio a falecer em 270 d.C.. Ainda de acordo com o testemunho de Porfírio (Life of Plotinus, 14), Plotino não apenas interpretava os textos dos comentadores que o antecederam, mas se aplicava à filosofia de modo original, independente e no espírito da doutrina de Amônio.


Gatti acredita que o relacionamento entre Plotino e Amônio lembra, de certa maneira, aquele entre Platão e Sócrates — se levarmos em conta os relatos de Porfírio, muito embora o pensamento de Amônio seja difícil de reconstruir porque ele nada escreveu, a conclusão inevitável é que “Plotino deve muito a Amônio, tanto em seu método de estudo quanto em relação à sua doutrina” [tradução nossa][4]. É interessante notar que Amônio nasceu numa família cristã e foi educado de acordo com o dogma cristão — somente pelo estudo da filosofia, mais tarde, Amônio iria se converter ao paganismo.


Referências:


[1] “[…] matters of logos, of spiritual powers, of the intelligible world, and in the accounts of theology and mystical asceticism.” GATTI. Maria L.


[2] “[…] claimed to find in Plato and the Stoics the appropriate understanding of the revelation of the Old Testament.” GERSON. Lloyd P.


[3] “[…] quite different from the predominately quantitative understanding of today.” W. K. C. Guthrie


[4] “[…] Plotinus owed Ammonius a considerable debt, both in his method of study and in his doctrine.” GATTI. Maria L.

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