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Independência de uma nação inventada?

Excerto de "O Sentido da Independência", publicado em "Já Raiou a Liberdade" (disponível na nossa loja)


Parte considerável dos historiadores sustenta que a nação brasileira inexistia no início do século XIX. O que nos levaria a perguntar o que, afinal de contas, teria se tornado independente na ocasião. A conclusão parece mais uma vez inexorável: na ausência de uma identidade nacional, a separação de Portugal teria por móvel o interesse de uma elite em manter a ordem escravocrata do Oiapoque ao Chuí, tese que, em uma mirada mais superficial, poderia encontrar apoio na seção de economia que acabamos de revisitar. O que expus, no entanto, vai na direção contrária a esta linha de argumentação: A elite social destas terras não era regida só por interesses econômicos. Suas ações eram determinadas por uma abrangente moldura cultural que nos remete a noções de prestígio oriundas da Baixa Idade Média. Vamos agora nos perguntar se esta mesma elite se adequava à figura do estadista que certa vertente historiográfica pensa ter inventado as nações.


Então vejamos. Em 1990, o historiador britânico Eric Hobsbawn lança Nações e Nacionalismo desde 1980: programa, mito e realidade, e alega que a [ideia de] nação era construção moderna, fruto da industrialização e da invenção, por elites estatais, de uma identidade homogênea a partir das culturas díspares e segmentadas das populações de dado território. Grosso modo, o cerne do argumento é que o Estado moderno mobilizava o nacionalismo a fim de construir a nação. A obra se inseria em debates levantados por estudiosos dos anos 1980, como Benedict Anderson e Ernest Gellner. Esta corrente, logo chamada de “modernista”, propôs que as nações resultavam de manipulações políticas realizadas de cima para baixo com o intuito de erguer Estados-Nacionais em uma era marcada pela urbanização e pela consolidação do capitalismo. Eles negavam que a nação fosse fenômeno pré-moderno que, em dadas circunstâncias, despertava para a necessidade de um corpo político próprio, posição que alguns chamam de “primordialista”, e que encarava as etnias na Alta Idade Média realidades quase que indiscerníveis das “nacionalidades”. Falava-se então de uma “nação” visigoda, sueva ou franca capazes de forjar Reinos Germânicos que tomaram o lugar do Império Romano do Ocidente entre o século V e o VIII. Na Baixa Idade Média, algumas destas “nações” ganharam aspecto territorializado, como foi o caso de Portugal e França, associando a Pátria, com certos traços culturais comuns, ao Rei. O primordialismo tem forte marcas do conceito de espírito [geist] de Herder, que moldou o nacionalismo étnico ao redor do mundo.


As teses modernistas também estavam conectadas ao “espírito do tempo”. A palavra da moda dos anos 1990 era globalização, e o nacionalismo era percebido por muitos analistas como besta ferida de morte. Os Estados-Nacionais deixavam de controlar suas próprias economias, como notava Hobsbawn, e a tendência parecia ser, segundo os mesmos analistas, que desembocassem em formas de associação mais amplas em um mundo que se ocidentalizava, adotava as instituições liberais e mergulhava no individualismo e no consumismo. Alguns céticos chamaram a atenção dos idealistas para a continuada existência de conflitos nacionalistas, como nos Bálcãs, mas os apelos não eram, em geral, ouvidos com a devida atenção. Com o tempo, o esvanecimento das ilusões mais ferrenhas do cosmopolitismo desnudou o fracasso da maior parte destas previsões. As nações e o nacionalismo teimam em sobreviver, e ainda não se descobriu identidade com maior poder de mobilização no mundo contemporâneo do que aquela nacional, exceção feita talvez à religiosa. Não à toa o sociólogo britânico Anthony D. Smith perguntava onde estavam os soldados capazes de morrer pela União Europeia. O antropólogo Uriel Araujo tratou deste tema recentemente:


“Na contramão de autores como Benedict Anderson e Eric Hobsbawn (que enfatizam a “invenção da noção”), pensadores como Anthony D. Smith, com seu etno-simbolismo, demonstram que mesmo o nacionalismo moderno bebe nas fontes arcaicas dos “ethnies”, um tipo de repertório cultural e de associação humana que, potencialmente, parece estar disponível em todos ou quase todos os períodos da História humana”. [1]


De fato, os etno-simbolistas sugerem uma reformulação do primordialismo, ou antes um “neo-perenialismo”, que desafia a tese de que a nação não passa de construção politicamente motivada surgida da ação burguesa dos séculos XVIII e XIX. “As nações têm umbigo?”, provocou Smith em debate com Ernest Gellner. A implicação era que o fenômeno nacional não era fruto de ato divino de estadistas, mas estava inscrito em um estrato de mitos, símbolos e valores antigos e ancestrais das populações. A nação não seria exatamente inventada, mas reinterpretada em um movimento em que artistas, intelectuais e sensibilidades religiosas assumem papel tão ou mais destacado que os ideólogos [2].


Mais ainda, a identidade nacional pode prestar um senso de solidariedade a despeito do Estado e até mesmo contra o Estado, discussão que se imbrica com a dicotomia entre nacionalismo étnico e cívico que remonta a Hans Kohn, e para a qual o nacionalismo cultural, tal como defendido por John Hutchinson, parece oferecer também uma alternativa. Dito de outro modo, o nacionalismo não pode ser reduzido a uma ideologia, pois ele cimenta e cultiva a comunidade, e a partir deste âmbito dialoga com os movimentos mais estritamente políticos. Além disto, se fundamenta em motivos e imagens ancestrais, sempre passíveis de emergir de acordo com as necessidades de populações que partilham um mesmo território e outros traços comuns. [3]


Voltando ao Brasil, parece claro que a historiografia oitocentista, como a de Francisco Adolfo de Varnhagen, se alinha mais com a sensibilidade primordialista ao imaginar a Independência como desenlace de um lento desabrochar da nação. Já abordagens mais construtivistas veem o processo como um acordo de elites para manter seus privilégios econômicos e sociais e “deixar tudo como está”: Mais tarde, a nação teria sido construída de cima para baixo com a imposição de determinados elementos culturais. Mas esta interpretação modernista não parece dar conta das complexas identificações [e desidentificações] ocorridas durante a ruptura com Portugal. Tampouco parece explicar a adesão popular ao movimento independentista, já que boa parte das tropas que combateram ao lado do Império do Brasil era recrutada em estratos sociais inferiores. Exemplos como o da Heroína da Pátria Maria Filipa de Oliveira, que liderou negros e indígenas contra os portugueses nas batalhas da Ilha de Itaparica, Bahia, indicam que o movimento repercutia também nas camadas despossuídas [4].


Evidente que identidades coletivas preexistiam à adesão política ao movimento de Independência. Ainda que não possam ser descritas como um nacionalismo moderno, certamente impulsionaram entendimentos e sentimentos, e interagiram com as estratégias políticas que modelaram o processo iniciado com a instalação da Corte, e que se estendeu, pelo menos, até os embates dos anos 1830, com a abdicação de Dom Pedro I em prol da “nacionalização da Monarquia”. É importante lembrar que durante a Ilustração, os próprios estadistas portugueses ajudaram a construir a ideia do Brasil como uma unidade complementar à metrópole, e cujo potencial restauraria o Império em seus melhores dias. Claro que o Brasil era visto como parte de Portugal, e habitado por portugueses:


“Este deve ser sem dúvida o primeiro ponto de vista luminoso do nosso governo, e já que ditosamente, segundo o incomparável sistema dos primeiros reis desta monarquia, que fizeram descobertas, todas elas foram organizadas como províncias da monarquia condecoradas com as mesmas honras e privilégios que se concederam aos seus habitantes e povoadores, todas reunidas ao mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para contribuírem à mútua e recíproca defesa da monarquia, todas sujeitas aos mesmos usos, e costumes, é este inviolável e sacrossanto princípio da unidade, primeira base da monarquia, que se deve conservar com o maior ciúme, a fim de que o português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português, e não se lembre senão da glória e da grandeza da monarquia a que se tem a fortuna de pertencer, reconhecendo e sentindo os felizes efeitos da reunião de um só todo composto de partes tão diferentes que separadas jamais poderiam ser igualmente felizes” [5].



Cabe perguntar, no entanto, o que significava ser um português em uma América com formas específicas de organização social. Constituída, sem dúvida, como um Antigo Regime nos trópicos, mas com suas próprias classificações e hierarquias, e o peso do escravismo e das alforrias, além de estamentos muito mais permeáveis e flexíveis, e um caráter marcadamente mestiço [6]. A própria dialética de identidades dentro do Império luso podia levar a diferenciações importantes entre os habitantes das colônias. É seguro dizer que a identidade brasileira surgiu em diálogo com a portuguesa, e talvez até da própria noção de pertencimento nascida na “terrinha” na Baixa Idade Média. Mas ela se desenvolvia em uma formação social com padrões próprios, e forte componente preto e indígena e mestiço.


O etno-simbolismo oferece meios para aplicar a 1822 a qualificação que lhe foi retirada pela historiografia das últimas décadas, a de movimento nacional. Para tanto, mais do que apontar que as identidades coletivas do Brasil foram mobilizadas politicamente em um projeto de novo país, seria interessante se deter em um recorte e enfatizar, a título de exemplo a ser desenvolvido em estudos posteriores, o imaginário do lusitano da América, uma das matrizes do nosso povo [7]. É fácil perceber o imenso peso dos mitos e imagens monárquicos, o que nos leva a refletir sobre o Rio de Janeiro, que, com o desembarque da família real portuguesa, se transformou não só em centro político, mas também núcleo de um poderoso e antigo senso de pertencimento. Afinal, a Independência foi, em larga escala, adesão à parte da Corte que se encontrava no Rio de Janeiro, um compromisso explícito com o Império do Brasil em detrimento do de Lisboa.


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NOTAS


1 ARAUJO, Uriel. Sobre mortos e vivos, o Brasil e o mundo. In: A Rainha do Meio Dia. Ensaios sobre a cultura brasileira e outros temas. Edições Sol da Pátria: 2022, p. 94.

2 Para a discussão entre as correntes de estudos sobre a nação, o nacionalismo e a identidade nacional: SMITH, Anthony D. The Cultural Foundations of Nations: hierarchy, covenant and republic. London: Blackwell Publishing, 2008.

3 As novas versões de primordialismo não negam as especificidades das nações modernas, apenas a encaram como possibilidades dentro de um espectro mais amplo do conceito de nação, entendida como uma certa continuidade de comunidades históricas. Anthony D. Smith, por exemplo, chama a atenção para a existência do modelo de nação israelita entre os povos cristãos. Nas Sagradas Escrituras, Israel associa determinada identidade com um território e uma forma de organização política. De fato, a ideia de nação pode ser flagrada em populações católica-romanas desde a primeira Idade Média, presente inclusive em documentos eclesiásticos.

4 Ressalto, porém, que a participação de massas urbanas ou a existência de um pertencimento nacional entre populações rurais não é um elemento importante no argumento dos etno-simbolistas.

5 COUTINHO, Rodrigo de Sousa. “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América.” In: Testes políticos, econômicos e financeiros, 1783-1811. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 48-49.

6 A mestiçagem a que me refiro também inclui a desetnicização que caracteriza o processo de formação das estruturas culturais do brasileiro, um “povo novo” na definição de Darcy Ribeiro, que o descreve como uma “macro-etnia” sem clivagens étnicas internas. Ver: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. O conceito de ethnie, de Anthony D. Smith, de caráter cultural e indicando uma matriz de mitos e imagens, pode jogar novas luzes sobre as intuições do antropólogo brasileiro.

7 Formado por populações de três continentes, a América Portuguesa certamente não se resumia a um imaginário transposto de Portugal, e mesmo as heranças lusitanas eram, provavelmente, relidas pelas demais matrizes étnicas e contextos sociais em que a população se encontrava nos nossos trópicos, sertões e praias.





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