O Calvário: forno onde Deus se faz alimento e Pão da Vida - reflexão de Páscoa
- Maria Eduarda Ferreira
- há 5 dias
- 6 min de leitura
Nesta Segunda-Feira Luminosa (pós-Domingo de Páscoa), Maria Eduarda nos brinda com uma reflexão sobre o sentido da Semana Santa [Sol da Pátria]
Originalmente publicado em "Do Alimento à Eucaristia: A saga do pão e o sacrifício da páscoa"
Não devemos nos esquecer que o que nos dá a vida é coisa viva. O grão de cereal, é de fato um ser vivo, desde o ventre da terra até o moinho…, e mesmo depois.
O homem antigo estabelecera uma relação íntima com o próprio alimento. A ideia da própria dificuldade para obtê-lo estava impregnada na vida cotidiana, principalmente na dimensão espiritual e religiosa. Até hoje o costume de não desperdiçar alimentos é relacionado ao sacrifício da colheita ou da obtenção da carne animal.
Não por coincidência, o pão, consta, foi inventado pelos egípcios, doutores entendidos que eram das coisas da morte. Com eles, a arte de impedir o apodrecimento fora um pouco além da técnica de mumificação dos corpos e passara também para a arte de fermentar a farinha.
A fermentação, afinal, era vista pelos antigos como uma espécie de negação da morte, uma interrupção do apodrecimento. E o pão, alimento principal, era visto como algo que, através da morte — a morte dos cereais, o ato de rasgar a terra durante o plantio, o semi-apodrecer da fermentação — serviria como “medula dos mortais” para que assim o ser humano pudesse viver.
A vida do homem egípcio era regida pela eterna dicotomia entre o forno e o túmulo; era muito comum encontrar fornos em templos e túmulos onde pães eram assados e ofertados aos mortos para que se alimentassem no outro mundo. Também ilustravam as tumbas e câmaras mortuárias hieróglifos mostrando o processo de fabricação do pão e versos mortuários sobre a importância do pão também no além-túmulo, na vida após a morte, no reino celeste.
Sou um homem que tem pão em Heliópolis, O meu pão está no céu, junto do Deus Sol, O meu pão está na Terra à guarda de Keb. A barca da noite e a barca da manhã Trazem-me o pão, o meu alimento, Da casa do Deus Sol.
Os gregos, por sua vez, também eram dotados da consciência do alimento como algo vivo, presente, real. Eles demonstravam o sentimento de compaixão para com os grãos e as sementes e isso também era expresso através dos mitos. Na Odisseia, Homero narra o sofrimento de uma moedeira a moer grãos; não somente sofre a mulher com o cansaço da mó, o próprio grão também sofre por ser moído.
Daí então manifesta-se a consciência da contradição: tudo o que envolve o pão, desde o plantio do trigo até a política (esta última que chegaria a seu apogeu mais tarde em Roma), envolvia sacrifício. Sacrifício não só do suor do rosto humano, mas da própria terra, que é rasgada para fecundar a semente, e da semente que desce ao submundo, bem como dos grãos que são moídos, pisados.
“O grão era torturado, esmagado. E por quê? Pois se o grão de trigo era a ‘medula dos mortais’, um amigo dos homens. E contudo era maltratado… Aliás como a uva era maltratada para dar o vinho. E na mentalidade grega instalou-se esta contradição: o grão de cereal só se transformaria em alimento dos homens, se os mesmos homens primeiro o torturassem e matassem.”
O próprio mito de Perséfone também carrega a culpa dos gregos pela morte dos cereais. A filha de Deméter, a semente, é raptada e obrigada a passar quatro meses no mundo subterrâneo com o deus dos mortos, Hades, depois retornando para a mãe. Eis aí a saga da semente sequestrada e enterrada para depois dar frutos e alimentar a terra.

O culto de Deméter em Eleusis, por sua vez, era também um culto do pão. Diz-se que o bárbaro Alarico, comandante de tropas invasoras, chegara a Grécia para destruir o culto do pão em Eleusis e, em meio à destruição e ao saque das hordas invasoras, veio até eles o último sacerdote eleusiano, Nestor, um conhecido neoplatônico. Tentou falar-lhes sobre Deméter, amiga dos homens, protetora da agricultura. Não conseguiu nada. Os soldados estavam com monges cristãos incitando-os a não deixar pedra sobre pedra e Nestor sucumbiu às espadas de Roma enquanto ouvia os gritos dos monges “Christus panis!” “Christus panis!” . Assim, ele soube que o pão cultivado por Deméter havia caído sob a espada de um outro pão mais poderoso: Cristo.
Tomai e comei…
"Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto." (São João, 12:24)
O cumprimento completo do rito, da espiga ceifada, da morte do grão para que só então nasça o pão, é a aliança final com o homem. Na páscoa judaica, Moisés liberta o povo da escravidão no Egito, mas o povo sente falta do antigo cativeiro porque estavam já habituados ao pão do Faraó:
"E os filhos de Israel disseram-lhes: Quem dera que nós morrêssemos por mão do Senhor na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar!" (Êxodo, 16:3)
Deus então faz chover maná do céu e ordena que os hebreus não acumulem esses pães pois eles não são como os dos egípcios e logo se desperdiçam. Devem, portanto, comer o suficiente e compartilhar com os outros.
Nada feito. No dia seguinte, a comida acumulada pela ganância, pelo costume, está podre e cheia de vermes. Não serve mais para nada.
No mar da Galileia, depois da multiplicação dos pães e peixes, os discípulos reclamam que não trouxeram pão e Cristo os adverte para que não somente procurem o pão que sacia o estômago, pois o verdadeiro pão já está ali com eles.
⁵Este é o pão que desceu do céu; não como de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre (São João, 6:58).
No entanto, Cristo, que além das coisas de Deus, sente também as dores dos homens, demonstra compaixão e consciência da necessidade de alimentar os famintos; distribui, multiplica, compartilha. O pão armazenado, como o maná, apodrece; deve então ser compartilhado.
Se partes teu pão com o faminto… brilhará tua luz como a aurora” (Is. 58,7–8).
É somente com o advento de Cristo que o verdadeiro pão celeste é enviado, dessa vez para libertar o povo de uma outra escravidão: aquela do pecado. O homem está preso nas distrações da carne e então Deus envia seu Filho, o pão da vida, como alimento espiritual para o mundo.
Depois de ter multiplicado o pão substancial dos famintos, de ter alimentado quem tinha fome, Cristo fala de forma direta e estabelece uma ação prática, legando um rito, uma tradição, não aos famintos de corpo mas aos famintos do espírito: é a eucaristia.
Christus panis — Cristo é o pão

A Páscoa é a lembrança do preço que foi pago pela liberdade. A Paixão é o rito em que Cristo se faz alimento. A comunhão do pão não é superficial ou meramente imagética, Cristo nasce em Belém — “casa do pão” em hebraico (Beit Lechem) — e, ao longo da vida e da morte, cumpre, com riqueza de detalhes o mesmo processo da fabricação do pão.



Assim como o pão, foi semeado, germinado, colhido, ceifado, amarrado como espiga, como grão debulhado; foi amassado, moído, lavado e colocado numa sepultura (simbolicamente associada ao forno); desceu ao Hades por três dias e então ressuscitou como prova de que veio para dar a vida. Ninguém vive sem alimento e, assim como o trigo, a oliva ou as uvas, ele se entrega para ser prensado, pisado, esmagado e exaurido pelo homem para que o próprio homem possa então, viver através dele.
Acolhido no ventre da Virgem, Deus se faz homem; rejeitado no ventre do mundo, Deus se faz pão. Se faz pão e se dá aos homens, eternamente.
“Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá eternamente. E o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (São João, 6:51)
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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