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Saberes indígenas — mercantilização?



Numa fala recente, o autor quilombola Nêgo Bispo afirma que o papel da universidade consiste na mercantilização dos saberes, ou seja, em transformar conhecimentos e práticas em mercadoria. Tendo a concordar com ele, mas com a ressalva de que nem sempre é necessária essa passagem pela universidade para que um determinado saber se torne alguma forma de mercadoria.

O problema não é a ‘mercantilização dos saberes’, mas a sua dolarização

Bem, certamente tem sido assim com aquilo que podemos chamar de ‘conhecimentos ayahuasqueiros’ ou ‘xamânicos’ - tampouco as práticas das religiões de matriz afro precisaram passar pela universidade para serem ‘mercantilizáveis’, mas isso já é outra história.


Quem faz parte do universo neoxamânico ayahuasqueiro já deve ter entrado em contato, pelo menos uma vez na vida, com esse tema da crítica à chamada ‘mercantilização dos saberes’. A crítica se concentra no fato de que, cada vez mais, o acesso àqueles chamados ‘conhecimentos ancestrais’, bem como às medicinas e vivências xamânicas ou neoxamânicas (sejam nas aldeias nativas ou em espaços providenciados para este fim) estariam se tornando cada vez mais uma ‘fonte de lucro’ para indígenas e, mais ainda, para não-indígenas.


Pois bem, como a gente conhece a outra ponta, podemos destacar o fato de que tais vivências (tendo se tornado, de fato, uma fonte relevante de recursos) também liberaram muitas comunidades indígenas da necessidade de fazer um uso exploratório de suas áreas ou do êxodo de parte de sua juventude para as grandes cidades. Além disso, por fazer com que elas se tornem algo financeiramente atrativo e relevante, o fenômeno tem feito também com que cada vez mais jovens se interessem e busquem se especializar em aspectos de sua cultura, tais como língua, música e histórias.


É justamente a suposta ‘mercantilização’ dos saberes, práticas e vivências que tem permitido o florescimento de uma classe média entre algumas comunidades indígenas, com acesso a bens e saberes que lhes seriam vedados em outras circunstâncias.


Ou seja, a inserção econômica da atividade traz uma série de pontos positivos; caso estes não estivessem presentes, o que aconteceria seria uma motivação para que esses mesmos jovens buscassem outras atividades econômicas, talvez relacionadas a gado e mineração em algumas áreas, ou talvez como operadores de máquinas ou ainda buscando uma carreira no setor público, entre outras.


O ponto negativo, evidentemente, é que o custo do acesso a tais conhecimentos, práticas e vivências tem se tornado cada vez mais proibitivo, gerando uma "elitização". Isso, contudo, não é o efeito imediato da ‘mercantilização’, mas sim da ‘dolarização’, ou seja, está relacionado ao interesse em tais práticas, vivências e conhecimentos despertado nos estrangeiros, que pagam por elas em dólar. Isso tende a ‘inflacionar’ tais vivências e, ainda que muitos indígenas sejam compreensivos com tais diferenças, o ‘mercado’ segue se inflacionando e afastando o trabalhador médio brasileiro ou, poderíamos aí acrescentar, latino-americanos. Isso porque do lado de lá da fronteira Brasil-Peru, essa dolarização é ainda mais intensa. E não vejo, de fato, problema algum no fato de que estrangeiros, sejam eles europeus ou estadunidenses, tenham interesse e venham gastar seus dólares nas aldeias. Isso nem de longe é uma questão moral.


O problema é antes de ordem financeira mundial. O dólar, sendo praticamente a única moeda de trocas internacionais, é mantido artificialmente alto, conferindo assim ao cidadão estadunidense um poder de compra incrivelmente acima da média mundial, quando comparado a um cidadão de um país latino-americano. Inclusive, é também em dólar que são pagas as pesquisas e publicações que tratam de fazer a crítica ‘decolonial’ da ‘mercantilização dos saberes’, desviando o foco da verdadeira questão. Aliás, o que não faltam são ‘xerimbabos’* para isso.


Para efeitos comparativos, um operário da indústria ou um prestador de serviço dos EUA tem melhores condições de bancar sua estadia numa aldeia por meses, passo que um trabalhador médio urbano brasileiro, nas mesmas funções, luta para fechar as contas do mês e quem sabe, poder tomar uma cerveja no litoral no final do ano. Não é de ‘mercantilização dos saberes’ que se trata o problema, mas antes de dolarização. Ou em outras palavras, o problema não é que os indígenas cobrem o valor justo por seu tempo e conhecimento, mas que não tenhamos o dinheiro para pagá-los por isso.


Mas, eis que surge a esperança no horizonte: com o avanço da moeda dos BRICS, quiçá em breve possamos pagar em ‘Brics Coin’ - lastreada em ouro de verdade e não no petróleo usurpado às custas do sangue do Oriente Médio - o valor devido ao tempo e conhecimento de quem mantém, estuda e pratica os conhecimentos ancestrais de seus povos.


* Xerimbabo: Animal de estimação, mascote, ‘Pet’, um bichinho domesticado que come na mão de seu dono. É o que nós, brasileiros, temos nos tornado em sua grande maioria.

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