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140 anos de Cornélio Pires

Se goza do reconhecimento nacional como um dos gêneros musicais mais populares, tanto no estrito quanto no amplo sentido do termo, o sertanejo muito deve aos préstimos do escritor Cornélio Pires, por alguns apelidado de "Bandeirante do Folclore Paulista", que, nascido em 1884m no dia 13 de julho de 2024 completaria 140 anos.


Cornélio Pires

As raízes do gênero se confundem com a história mesma da colonização do país: a viola, elemento indissociável, veio ao Brasil com os missionários jesuítas que, no fito de imprimir certa ludicidade ao propósito catequético, encontraram na música uma linguagem universal que transporia as fundas diferenças entre os nativos e os chegados; o cateretê, dança típica de nossa cultura e outra presença marcante na musicalidade caipira, é também produto desse intercurso, tendo sido primeiramente desempenhado pelos indígenas, já razoavelmente aculturados e arrebanhados nas missões, em seus momentos de lazer; já o cururu, também conhecido como desafio, outro produto dessa interação de ordem cultural-religiosa, nada mais é que a reunião de dois "cantadores", a contraporem, ao som da viola, os versos um do outro, sempre neles trazendo alusões a signos da fé católica. Se dessa tríade resultou a expressão máxima do povo caipira, foi graças ao empenho impagável de Cornélio, ele próprio rebento da raça, porquanto descendente de João Ramalho, tido pelos historiadores como o "Fundador da Paulistanidade".


Nascido a 1884, na cidade do Tietê, São Paulo, Cornélio desde a infância se mostrava afeito à roça. Quando se mudou para a cidade, dedicou-se aos estudos, até então negligenciados em favor do auxílio à lide rural. Ali recebeu instruções que estreitaram seu vínculo com a literatura e levaram-no a, alguns anos depois, ingressar na carreira jornalística como aprendiz de tipógrafo.


O contato com as letras induziu o rapaz a vislumbrar uma vida dedicada à poesia e à imprensa. Aos 17 anos, morando sozinho na capital paulista, passou a trabalhar como repórter para o jornal "O Comércio de São Paulo", aos poucos se consolidando como jornalista e escritor; nunca se desprendeu, no entanto, de suas raízes interioranas.


A atenção especial dispensada à gente caipira, pouco usual entre as gentes de letras, mereceu aplausos do escritor Amadeu Amaral, que teria dito a Cornélio: "Muito bem! Você descobriu

um filão a explorar e que está totalmente abandonado".


Aos 26 anos, em 1910, publicou seu primeiro livro, 'Musa Caipira', com alguns de seus versos de inspiração sertaneja. No mesmo ano, em sua primeira aparição pública, encenaria um típico velório caipira, com cantadores, catireiros e contadores de história nas dependências do Mackenzie College, despertando a atenção de alunos, professores e pais. Em 1914, de maneira inédita, passou a organizar, na grande cidade, as ditas "Conferências Caipiras", em que divulgava os causos, modas de viola, danças e anedotas populares entre os caipiras para figuras da alta sociedade paulistana, como Washington Luís, futuro governador do estado, reconhecido pelos grandes préstimos aos estudos da formação histórica de São Paulo. As conferências, realizadas por anos a fio, alcançaram estrondoso sucesso entre o público paulistano, que ali travava contato com uma cultura que até então lhe parecia tão exógena, recebendo-a efusivamente em seus grandes salões e teatros. No plano literário, seguia na mesma senda da "descoberta" do mundo caipira, publicando vocabulários, contos e afins.


Percebendo a grande recepção dispensada à viola e ao caipirismo na cidade grande, Cornélio então animou-se a dar passo mais arrojado em sua missão de propagador daquela cultura: gravar um disco com modas e anedotas caipiras. Longe de ser um plano de fácil satisfação, enfrentou inúmeras negativas e, em 1929, ao apresentar o seu audacioso projeto, chegou a ser ridicularizado pelo empresário Alberto Jackson Byington Jr., diretor da empresa que representava a gravadora Colúmbia, ouvindo deste que "estaria sofrendo alguma coisa parecida com um desequilíbrio mental", pois que não haveria espaço para aquele gênero no mercado fonográfico. Persistente - comprometeu-se mesmo a financiar a gravação - , o jornalista ao fim conseguiu, a muito custo, dobrar o empresário, que cedeu à sua demanda, condicionando-a, no entanto, à aquisição de mil discos com pagamento à vista. Não tardou a que Cornélio tornasse a seu escritório com montante equivalente à compra não de mil, mas

de cinco mil discos, e prontamente exigisse, finda aquela primeira remessa, a confecção de

quatro outras séries de cinco mil discos cada, totalizando vinte e cinco mil, assombrando o

seu interlocutor com o que parecia uma loucura insanável.


Foi realizada a sua vontade: trouxe de Piracicaba a 'Turma Caipira', com quem trabalhava em suas Conferências, e produziu os trabalhos inéditos, apresentando peças humorísticas, danças e canções típicas. A gravadora, em maio de 1929, entregou, para além do que havia pedido, outra série de cinco mil discos, perfazendo, ao todo, 30 mil unidades. Ficou acordado, ainda, que a partir do número 20.000, os discos seguintes receberiam um selo vermelho, que marcaria a 'Série Cornélio Pires', cujo direito de comercialização pertencia exclusivamente ao próprio, recebendo valor de mercado superior aos demais. Já no mês de outubro do mesmo ano sairia um segundo suplemento, com mais cinco discos distintos, cada um com cinco mil unidades. Nesse suplemento é que, pela primeira vez na história do mercado da música, foi gravada uma moda-de-viola, "Jorginho do Sertão", pela dupla Mariano & Caçula.


Passando ao largo do esperado fracasso retumbante, a empreitada de Cornélio - que deu continuidade às suas Conferências por todo o estado de São Paulo, valendo-se da ocasião para anunciar suas produções - logrou êxito de maneira tal que multidões se ajuntassem às portas da gravadora à procura de seus discos, esgotando rapidamente os estoques e levando, para o espanto de Jackson, à reedição dos trabalhos, dada a procura infrene do público.


Nos anos seguintes, continuou gravando, escrevendo e se apresentando com a sua turma. Indissociáveis o prestígio que conquistava e o sucesso que a cultura do interior paulista fazia nas grandes cidades, se tornou o nome mais importante da gravadora Colúmbia. No rádio, seu sobrinho, Ariowaldo Pires, o 'Capitão Furtado', passaria a apresentar, na rádio Difusora, o programa Arraial da Curva Torta, - também voltado à divulgação do caipirismo - por meio do qual apresentou para o mundo a dupla composta pelos irmãos João e José Perez, que ele próprio batizou como Tonico & Tinoco.


Descrevendo com precisão a essência miscigenada da música caipira, em feliz colocação que ecoa Olavo Bilac, no poema "Música Brasileira", os ensaios de Mário de Andrade e a pesquisa de tantos outros intérpretes da cultura brasileira, assim falou o pesquisador Cornélio, em seu livro "Conversas ao pé do fogo":


"A música e o canto roceiro são tristes, chorados em falsete; são um caldeamento de tristeza do africano escravizado num martírio contínuo, do português exilado e sentimental, do bugre perseguido e cativo. O canto caipira comove, despertando impressões de senzalas e taperas. Em compensação, as danças são alegres e os versos quase sempre jocosos".


O corpo de crenças e saberes caipiras, pois, que parecia, no princípio do século, fadado ao ocaso, vitimado pelo crescente processo de urbanização, que aos poucos desfez os seus tradicionais "bairros' e dispersou suas gentes, teve no escritor um vivo defensor, que o eternizou em toda a sua obra e fê-lo objeto de produções da maior importância na cena cultural da época, somando esforços com os trabalhos dos modernistas como Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, empenhados, à mesma altura, no resgate do folclore nacional e em sua ampla divulgação. A musicalidade daquele povo, longe de perder-se no tempo, tomou de assalto as gravadoras e, aos poucos, consolidou-se como um dos maiores gêneros do país. Fruto, em grande parte, da coragem de um homem que, ainda moço, resolveu-se a dedicar sua vida àquele filão, de que falava Amadeu Amaral, e que tão bem explorou que, se hoje vamos falar dessa cultura, é imprescindível folhear a sua história.

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