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61 anos sem Ary Barroso

O dia 9 de fevereiro marcou o aniversário de falecimento de um dos grandes vultos da música brasileira do século XX, Ary Barroso, o lendário compositor de 'Aquarela do Brasil', que legou à posteridade uma vasta obra permeada pela brasilidade, e que deu origem àquilo que se convencionou chamar de 'samba-exaltação', embebido do nacionalismo vivaz dos versos dos poetas românticos do século XIX.

 

Ary Evangelista Barroso nasceu a 7 de novembro de 1903, na cidade de Ubá, Minas Gerais. Aos oito anos perdeu os pais para a tuberculose e passou a ser criado pela avó materna e pela tia, Ritinha, que lhe ensinaria a tocar piano. Aos doze, começou a trabalhar em auxílio da tia, que fazia fundo musical durante a exibição de filmes no cinema local. Com quinze, assinou sua primeira composição: um cateretê - gênero musical que se confunde com a história do país, marcado pela convergência entre a efusividade indígena e a viola trazida pelos jesuítas - chamado 'De Longe'.

 

A despeito de seguir empreendendo estudos em teoria musical e de se aperfeiçoar ao piano, não imaginava, a princípio, a música como o seu futuro. Tomou os rumos do Rio de Janeiro e, em 1921, aos dezoito anos, ingressou na faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Conciliava os estudos com o trabalho nos cinemas da capital nacional, novamente fazendo fundos musicais para os filmes mudos ali exibidos. Sucede que o ofício musical passou a consumir o seu tempo de estudo, e por diversas vezes interrompeu os estudos, que só concluiria em 1929. A essa altura, já havia se consolidado no meio musical, integrando algumas das mais reputadas orquestras do Rio, se apresentando nas salas de espera dos grandes teatros cariocas e nos clubes da alta sociedade.

 

Já era de ampla fama o seu talento, tido por muitos como um dos melhores pianistas do país e, cm companhia das orquestras, algumas como integrante, outras como organizador, viajou por todo o Sudeste em apresentações; no ano de conclusão do curso, uma viagem a serviço à Bahia marcou em definitivo sua obra musical, em que reiteradas vezes exaltou as belezas que por lá encontrara. Nessa mesma época começou a compor músicas para peças teatrais, a pedido dos dramaturgos Marques Porto e Luís Peixoto; foi na esteira dessa colaboração que compôs a trilha sonora da peça 'Vai dar o que falar', que trouxe pela primeira vez ao tablado a jovem Carmen Miranda, com quem Ary desenvolveu profícua parceria - foi o compositor que Carmen mais gravou em sua carreira.




 

Sua primeira composição de grande sucesso foi a marchinha 'Dá nela', de 1930, também composta para o teatro, com que conquistou o prêmio de um concurso de músicas carnavalescas - seria a música do Carnaval daquele ano. Com o dinheiro da premiação, pôde enfim se casar com Ivone, sua amada. No ano seguinte, 1931, compôs, talvez sem a dimensão da grandiosidade do que fazia, a música 'Na grota funda', que teve a letra modificada por Lamartine Babo, seu amigo de anos, e tornou-se, enfim, 'No rancho fundo', sucesso intergeracional, expressão-mor da singeleza e da tristeza que, para muitos, é um marco da musicalidade sertaneja, vinco inarredável na alma do caipira e do caboclo.

 

Mas não se limitou a marcar época na música: em 1932, foi contratado pela Rádio Philips para exercer o ofício de pianista, a convite de um conhecido, e logo, em virtude de seu desembaraço e expressividade se tornaria um dos ícones da radiocomunicação, seja como locutor desportivo, animador ou humorista; em 1937, na Rádio Cruzeiro do Sul, lançou o programa 'Calouros em Desfile', em que os participantes só podiam cantar músicas nacionais, e trouxe, como fato inédito, o gongo para marcar a reprovação dos candidatos, em geral anônimos em busca do estrelato. Nesse ínterim, dentre as inúmeras músicas que levavam sua assinatura, compôs 'Na batucada da vida', posteriormente regravada por Elis Regina, bem como 'Inquietação', que ficaria eternizada na voz de Dorival Caymmi, e 'No tabuleiro da baiana', que se tornou um dos maiores sucessos da carreira da pequena Carmen.

 

Em 1938 foi o narrador oficial das gravações das fitas dos jogos da Copa do Mundo de 1938, disputada na França, que só depois chegaram ao Brasil, sem som, e por isso exigiam a sua dublagem. Em 1939 - a essa altura, já era a estrela da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro - gravou 'Na baixa do sapateiro', clássico da música popular brasileira, e, mais adiante, a canção que o entronizou no panteão da música nacional: Aquarela do Brasil. A música, que contou com a participação da orquestra do maestro Radamés Gnatalli, não mereceu, no entender de Villa-Lobos e demais jurados da competição de sambas carnavalescos de 1940, sequer o terceiro lugar.

 

Nessa mesma época, Carmen Miranda arrebatava os Estados Unidos com seu charme e extravagância e, tendo cantado Aquarela em um dos filmes lá produzidos, a música caiu nas graças de Walt Disney, que incluiu a canção, bem como Na baixa do sapateiro, no filme 'Alô, amigos', de 1942, que trouxe a figura do Zé Carioca. A admiração de Disney foi tanta que chegou a convidar Ary para assumir a direção musical de sua companhia, proposta que o brasileiro, no entanto, declinou. Em 1944, foi às telas o filme 'Brazil', dirigido por Robert North, que contava com a música 'Rio de Janeiro', também composição de Ary, e pela qual concorreu ao Oscar de Melhor Canção.

 

Na década de 40, para além do reconhecimento internacional, Ary se meteu na política. Foi o segundo vereador mais votado pelo Rio de Janeiro, e participou ativamente dos debates em torno da construção do Maracanã; ele próprio um compositor, encampou a luta pela valorização dos direitos autorais, sendo o primeiro presidente da União Brasileira de Compositores. Não se reelegeu, a contento de seus admiradores, como se manifestou o jornal O Globo:

 

''Ficamos com pena do velho Ary, mas sentimos, ao mesmo tempo, uma grande alegria com a notícia. Alegria real, profunda, patriótica, de ver que o veterano compositor desiste afinal dessa coisa feia e muitas vezes suja, para a qual não nasceu, e que se chama política, para prosseguir no seu destino sonoro de  criar melodias que nós cantamos hoje, e que os filhos dos nossos filhos cantarão ainda, com a mesma emoção e ternura [...]''

 

Ainda presente no rádio, em 53 um fato inusitado: apresentou-se em seu programa 'Calouros em Desfile' uma certa mulata, em andrajos, com cabelo de maria-chiquinha, a quem Ary perguntou, ao vê-la: 'De que planeta você veio, minha filha?' A moça, com brio, respondeu ao já consagrado músico 'Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome'. Quando passou a cantar, do escárnio passou o ubaense à admiração, ao ver aquela moça defender magistralmente a canção 'Lama'. Arrebatado, Ary exclamou que ali nascia uma estrela. Era Elza Soares.

 

Os anos que se seguiram marcaram inúmeras homenagens à sua vultosa obra, como o recebimento da medalha da Ordem do Mérito, pelas mãos do presidente Café Filho - momento em que, sendo também homenageado o maestro Heitor Villa-Lobos, os dois se reconciliaram, após a diatribe que se seguiu àquela competição de 1940.

 

Merecendo láureas também no âmbito desportivo, como consagrado locutor, Ary nunca escondeu sua paixão pelo Flamengo - o rubro-negro foi o motivo central da recusa à proposta de Walt Disney - e chegou a exercer um cargo na diretoria do clube próximo ao fim de sua vida. Ainda por amor ao clube, como pagamento de uma aposta feita às vésperas de um Fla-Flu, chegou a sacrificar seu bigode tão inconfundível.

 

No princípio dos anos 60, no entanto, o compositor foi acometido por uma cirrose hepática, que lhe custaria em poucos anos a vida. Faleceu aos 61 anos num dia 9 de fevereiro, em pleno Carnaval, enquanto era celebrado na avenida pelo Império Serrano; deixou uma legião de admiradores, inspirados na sua paixão insofismável pelo Brasil, a quem dedicara inúmeras canções, como se não bastassem os versos sublimes da Aquarela. Em sua obra, à sofisticação do piano, seu companheiro de toda uma vida, uniu o dinamismo dos trópicos, que tão bem retratara, realçando em suas letras, as belezas e as particularidades da vida nacional que encontrara em suas andanças. Deixou uma marca indelével também no Carnaval, com lindas melodias e letras elaboradas, de tal forma que é impossível falar das consagradas marchinhas sem o recordar. Ary, um mineiro de nascença, viveu como ninguém o Rio de Janeiro, amou a Bahia e levou o Brasil, 'terra boa e gostosa' ao mundo com resplendor. As centenas e centenas de celebrações à sua vida e obra são poucas para quem tanto fez com autenticidade e esmero. Que não pare em Carmen, Caetano, Caymmi, João Gilberto, Elis, Gal e Chitãozinho & Xororó a longa lista dos seus eternos aprendizes nessa escola de amor à pátria-mãe.

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