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Candeia: Uma estrela no céu da música brasileira

“Produzir cultura significa fazer criações originais. Não sendo possível a vida cultural, desenvolve-se uma forma alienada de cultura, à base da leitura de produções alheias de problemas alheios. Assim que se explica nossa inveterada tendência à imitação, à cópia de modelos estrangeiros e a valorização de tudo que é importado, sinal de complexo de inferioridade. [...] A posição do “Quilombo” é principalmente contrária à importação de produtos culturais prontos e acabados, produzidos no exterior. Acreditamos em nossa matéria-prima. Se este é um comportamento romântico, estamos satisfeitos. Lutaremos apaixonadamente.”


Candeia & Isnard, “Escola de Samba, árvore que esqueceu a raiz”


Nascido em Oswaldo Cruz em 17 de agosto de 1935, em plena década de consolidação das Escolas de samba, Antônio Candeia Filho dizia nunca ter tido uma festa de aniversário típico das crianças de seu tempo. Em vez da tradicional reunião com refrigerantes e bolos com velas, seu pai Antônio Candeia, um tipógrafo amigo de Paulo da Portela e considerado criador das “Comissões de Frente”, que mais tarde se tornariam quesito de julgamento no Carnaval, montava rodas de samba inesquecíveis, acompanhadas de muita feijoada e cerveja.


E foi nas rodas de samba no terreiro da lendário Dona Ester, a mais poderosa ‘Mãe-de-Santo’ dos subúrbios cariocas, que Candeia dominou todas as linguagens ligadas ao samba, se tornando um verdadeiro compêndio da música popular do Rio. A genialidade aflorou cedo, e ainda adolescente ganhava os concursos de sambas de enredo na Portela, o primeiro deles em 1953, quando contava apenas 16 anos de vida. Entre 1953 e 1965, cravou quatro sambas campeões do carnaval pela Águia de Oswaldo Cruz e Madureira.


Já neste tempo se preocupava pelas transformações que o samba sofria em sua nova articulação com a indústria fonográfica, e se envolveu com o Movimento de Revitalização do Samba de Raiz, em parceira com o Centro Popular de Cultura [CPC], fundado no Rio em 1962 e ligado à UNE, que na época contava com muitas lideranças que pertenciam ao Partido Comunista Brasileiro. Candeia fundou um grupo ligado ao movimento, o “Mensageiros do Samba”, com participação também de Arlindo Cruz [o pai], Picolino, Casquinha e Jorge do violão. O CPC, no entanto, foi fechado pelo regime civil-militar.


Personalidade complexa, Candeia era um policial civil linha dura, que tocava o terror na região do Cais do Porto. Em 1965, se envolveu em um acidente de trânsito com um caminhão de peixe. Ironicamente, era a esquina da Avenida Presidente Vargas com a Marquês de Sapucaí, que décadas depois abrigaria o “Sambódromo”. Alterado por causa de altas doses de bebida alcóolica, Candeia pulou do carro dando tiros nos pneus do caminhão. Não esperava que o motorista, um italiano, também estivesse armado e revidasse com cinco tiros, dois dos quais atingiram seus pulmões. Uma das balas se alojou na medula e o deixou paraplégico.


Candeia entrou em depressão, mas também em uma profunda busca interior que potencializou ainda mais sua verve artística e consciência política. Daí para frente, compôs algumas das maiores joias da história do samba, e fundou o Departamento Cultural da Portela, ajudando a escola com o enredo “Ilu Ayê”, dedicado à História do negro na civilização brasileira. Sua realização como compositor atingiu o ápice com cinco álbuns lançados nos anos 1970, inclusive “Axé”, considerado por muitos o maior do gênero.


Mas o legado de Candeia não para por aí. Descontente com os rumos tomados pelas Escolas de Samba, que atraíam cada vez mais artistas plásticos e abandonavam seu caráter comunitário ao se focarem nos desfiles do Carnaval – cuja grandiosidade e suntuosidade deslocava o papel antes reservado aos passistas e compositores --, Candeia divulgou um manifesto endereçado a Carlinhos Maracanã, então Presidente da Portela. Também assinavam o documento Paulinho da Viola, André Motta Lima e outros:


“Escola de Samba é povo em sua manifestação mais autêntica! Quando se submete às influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo [...]. Durante a década de sessenta, o que se viu foi a passagem de pessoas de fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O sambista, a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes desprezado e até perseguido. O sambista não notou que essas pessoas não estavam na escola para prestigiar o samba. [...] Essas influências externas sobre as escolas de samba provêm de pessoas que não estão integradas no dia-a-dia das escolas. E por não serem partes integrantes dessa cultura popular, que evolui naturalmente, são capazes de se deixar envolver pelo desejo de rápidas e contínuas modificações, que atendam a sua expectativa de sempre ver ‘novidades’. A despeito de algumas boas contribuições deixadas por pessoas que agiam sem interesses pessoais, e pensando no samba, a maior parte dos palpites tratava de submeter as escolas ao capricho dos intrusos. [...] A Portela adotou a águia porque era o símbolo do que voa mais alto, acima de todos. E, inatingível, a Portela nunca imitava nada dos outros. Sempre criava. Hoje, o que a Portela está fazendo é procurar copiar o que dizem estat dando certo em outras escolas. Voltando a olhar o samba por si mesma, a Portela voltará a ter os valores imprescindíveis, que tanto serviram para afirmar sua glória. Enganam-se os que pensam ser impossível recobrar esses valores. Esses valores foram capazes de fazer com que todos aguardassem a nossa escola com a expectativa de que veriam alguma coisa original. E o original, no momento, é ser fiel às origens.”


Existiam movimentos de resistência às mudanças que surgiam no horizonte. Era a época da fundação de blocos em que nasceu o Pagode Fundo de Quintal, como o Cacique de Ramos. Da busca por manter as tradições surgiu também o Clube do Samba, na residência de João Nogueira. Para ser fiel às origens, Candeia não titubeou: rompeu com a Portela em 1975, e com apoio de Monarco, Elton Medeiros, Casquinha, Wilson Moreira, Mauro Duarte, Clara Nunes e outros, fundou o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo [GRANES].


A GRANES tinha por símbolo a Palmeira, desenhada por Jacira Silva com a intenção de lembrar o Quilombo dos Palmares. Suas cores eram o dourado [em homenagem a Oxum], o lilás e o branco. O objetivo, segundo o próprio Candeia, era “desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira; lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular; [...] organizar uma escola [...] que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro”. Em 1977, como parte do mesmo movimento, Candeia lançou junto com Isnard de Araújo o livro-protesto “Escola de Samba, a árvore que esqueceu a raiz”.


A “Quilombo” atraía para Rocha Miranda e Coelho Neto um verdadeiro cabedal de pesos pesados da música popular, como Paulinho da Viola, Clara Nunes, Paulo César Pinheiro, Dona Ivone Lara, João Nogueira, Jorginho do Império e outros. Tinha apresentações de grupos de maculelê, afoxé e jongo; e era acompanhada por diversos antropólogos e sociólogos.


Candeia se tornou uma estrela nos céus brasileiros em 16 de novembro de 1978, quanto tinha apenas 43 anos de idade, vitima de uma infecção renal oriunda de problemas causados pela paralisia. Mas seu legado, inspiração e genialidade resistem ao tempo.


“No dia marcado introduzimos

o grande Candeia na arena, em sua

cadeira de rodas, e o teatro veio

abaixo. Aplaudiram freneticamente, de pé

Aí o mestre foi dedilhando seu violão

Devagarinho até conseguir silêncio total.

Então cantou:

De qualquer maneira meu amor eu canto

De qualquer maneira, meu encanto eu vou cantar

Sentando em trono de rei

Ou aqui nesta cadeira

Eu já disse já falei

Que eu canto de qualquer maneira

Quem é bamba não bambeia

Digo com convicção

Enquanto houver sangue nas veias

Empunharei meu violão

De qualquer maneira meu amor eu canto

De qualquer maneira, meu encanto eu vou cantar

E a platéia chorava...”


Martinho da Vila, “Em memória de Candeia”

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