NÃO QUEREMOS ACREDITAR: LÔ PARTIU
- Amaury Azevedo Leite
- há 12 horas
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O alvorecer neste dia 03 de novembro viu silente não apenas aquela esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, do bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, que viu crescer um certo Salomão, mas as esquinas de todo o país. E silentes não por indiferença, mas por incredulidade; nesta segunda-feira, recaiu sobre toda uma gente a devastadora notícia da perda do inigualável Lô Borges, um dos fundadores do Clube da Esquina, grupo que, a despeito da existência breve – gravaram, de forma conjunta, apenas dois discos –, marcou de forma indelével a música brasileira, e consagrou, além de Lô, gigantes como Milton Nascimento, Fernando Brant, Toninho Horta, dentre outros.
Salomão Borges Filho nasceu a 10 de janeiro de 1952, na cidade de Belo Horizonte, numa família repleto de músicos – foi o sexto dentre seus irmãos a se enveredar nessa seara e, com seu irmão Márcio Borges, compôs sucessos a exemplo de "Trem de doido" e "Quem sabe isso quer dizer amor". Dessa criação resultou um rapaz que, não obstante a efervescência política e social do cenário que o circundava – o que certamente não ignorava –, não se deixou envilecer, mas antes se fez uma criatura de sensibilidade ímpar, ávido pela musicalidade da bossa-nova, do jazz, e, como se descreveu, um "adolescente que amava os Beatles e os Rolling Stones"¹.
Foi esse menino apaixonado que, por volta dos dez anos, conheceu, por obra do acaso, um jovem Milton Nascimento, dez anos mais velho, nas escadarias do Edifício Levy, onde residia de momento. Milton logo atinou para a curiosidade do pequeno Lô, e da paixão comum pela música surgiria uma longeva e profícua amizade, a que se achegaria, alguns anos depois, Beto Guedes, formando assim a base do que viria a ser o Clube da Esquina, um grupo de meninos que se reunia nas esquinas do Bairro de Santa Tereza para tocar, cantar e, imiscuindo as mais diversas influências, produzir o que culminaria, alguns anos depois, no álbum "Clube da Esquina", consagrado pela crítica especializada como um maiores álbuns da história da música brasileira.
E assim foi crescendo um rapaz longe de qualquer vaidade, que pouco queria saber senão do seu violão, das composições e dos amigos, e que, recrutado pelo Exército aos dezoito anos, não conquistou a simpatia dos militares, visto que, conforme relata, teria ouvido de um capitão que "todo músico era comunista", razão pela qual fora dispensado do serviço militar. Um ano depois, aos dezenove, já em plena ditadura, recebera um convite do amigo Milton, que então residia no Rio de Janeiro e já começava a despontar na cena musical. A princípio, o jovem encontrou a relutância da família, que temia que a aglutinação dos artistas na antiga capital fosse considerada movimentação subversiva e culminasse no pior.
Mas nem o receio da mãe zelosa impediu que o destino se concretizasse, e então o mineiro partiu para terras fluminenses, dividindo com o amigo um apartamento que respirava música o diuturnamente. Milton comprou uma dura briga com a gravadora Odeon para gravar, em coautoria, um álbum com o até aquele momento desconhecido Lô Borges, mas a desconfiança preliminar fora enterrada ao apresentar suas composições, como "Um girassol da cor de seu cabelo" e "Paisagem da janela".

Daí, apesar de uma resistência por parte da imprensa especializada, que forçava comparações com os artistas da época, num esforço de assimilação que ignorava as singularidades daquele movimento marcado pela liberdade e pela simbiose natural das idiossincrasias de seus integrantes, Lô foi projetado à cena nacional, e, dentro em pouco, se consagraria, dessa vez em carreira solo, com o álbum "Lô Borges", de 1973, marcado como o "Disco do Tênis".
Ainda que profundamente diverso de caetanos e chicos, não se diga que se furtou às questões de seu tempo: com uma astúcia memorável, driblou a marcação pesada da censura e, no auge da ditadura, falou, da janela lateral, "das cores sórdidas e dos homens mórbidos", legando uma música que, genial por si, escancarava a rudeza dos censores, incapazes de compreender a crítica ali impressa.
Digna de nota também a paixão com que se devotava à criação, originalíssima que fora a sua existência e trajetória profissional – o seu último álbum, "Céu de Giz", gravado em parceria com Zeca Baleiro, foi lançado há apenas dois meses –, marcada, como se viu, por composições eternizadas em sua voz ou nas vozes de Elis Regina, Gal Costa, Nana Caymmi, Milton Nascimento, bem como do grupo "Skank", que fez sucesso com faixas como "Trem Azul" e "Dois Rios", de sua autoria.
Há muito que se dizer, mas nada pode dar a conhecer o homem tão bem como sua obra. Fica, ao leitor, o convite para imergir na imensidão do legado deixado por um homem que não cabia em rótulos e que provou que nem mesmo a aridez do ambiente externo é capaz de sufocar as almas destinadas à grandeza, crentes em que, como Pessoa alertara, "a morte é a curva da estrada", e cada verso gravado na alma dos ouvintes é uma centelha que mantém vivo o homem.
Nota




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