Na Europa, a guerra de narrativas sobre o passado continua: a 2ª Guerra Mundial nunca acabou
Sol da Pátria - traduzido e adaptado de http://infobrics.org/post/38386
Na Europa, segue a guerra de narrativas sobre a história e a memória. No dia 10 de maio, o ministro do Desenvolvimento polonês, Waldemar Buda, anunciou que Varsóvia decidiu renomear a cidade russa de Kaliningrado em seus documentos oficiais: ela agora será chamada de Królewiec, nome que tinha quando governada pelo reino polonês nos séculos XV e XVI.
Existe atualmente uma comissão encarregada de padronizar nomes estrangeiros na língua polonesa. Buda foi bastante direto ao justificar essa decisão quando afirmou que “não queremos russificação na Polônia e é por isso que decidimos mudar o nome de Kaliningrado e da região de Kaliningrado em nossa língua nativa”. O porta-voz do Kremlin, o russo Dmitry Peskov, respondeu descrevendo a decisão como beirando a "loucura".
O Oblast de Kaliningrado, província onde está localizada a cidade de mesmo nome é o território federal mais a oeste da Rússia. É um semi-exclave, banhado a noroeste pelo Mar Báltico; ao sul faz fronteira com a Polônia; e ao norte e leste, com a Lituânia. Após a derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial e a subsequente expulsão dos alemães, o território foi povoado por cidadãos soviéticos, a maioria deles russos.
Com o colapso da União Soviética em 1991, o exclave tornou-se bastante separado, geograficamente, do resto da Federação Russa pelos novos países independentes. Esta situação agravou-se quando os vizinhos Lituânia e Polônia tornaram-se membros da OTAN e depois da União Europeia (EU) em 2004: depois disso, arranjos especiais de viagem foram feitos para os habitantes do Oblast, mas, em setembro de 2022, entraram em vigor restrições que não permitem mais a passagem de russos com vistos de turista pelas fronteiras do Báltico.
Esta situação peculiar é mais um exemplo da expansão agressiva da OTAN/bloco ocidental e das políticas de cerco que têm avançado desde a queda da União Soviética, especialmente desde 2014, e são uma das principais causas do atual conflito russo-ucraniano hoje. Na verdade, a Aliança Atlântica vem se expandindo para o leste desde pelo menos 1999 e, agora, com a entrada da Finlândia (e com a adesão da Suécia pendente de aprovação), seu alcance pode expandir-se fechando um círculo completo até o Ártico, que é outro ponto geopolítico importante.
Retornando ao Mar Báltico, a política polonesa da memória histórica, em relação à renomeação de Kaliningrado, também deve ser vista como parte desse contexto maior, que envolve uma “agenda” ocidental voltada a transformar o Mar Báltico em um “lago da OTAN”. Deve-se esperar, portanto, um aumento contínuo das tensões em torno deste semi-exclave russo, como já está ocorrendo. Em novembro do ano passado, por exemplo, soldados poloneses começaram a colocar arame farpado ao longo de sua fronteira com o Oblast e câmeras.
Trata-se de uma zona fronteiriça pouco habitada, até então patrulhada, mas sem qualquer barreira física. A Letônia, outra nação báltica, exigiu que idosos de etnia russa, que são cidadãos letões, façam um humilhante teste básico de língua letã como uma “prova de lealdade” a uma nação onde já vivem há décadas – se falharem, serão expulsos. Considerando esse contexto geral, não é de se admirar que Moscou tenha descrito a última mudança de nome levada a cabo por Varsóvia como um “ato hostil”.
Combater a “russificação” tem sido, em realidade, simplesmente um código para a russofobia. O fenômeno mais amplo do neomacarthismo anti-russo no Ocidente, na verdade, é anterior ao atual conflito russo-ucraniano, mas tem escalado na forma de uma “cultura de cancelamento” promovida pelo estado contra tudo o que é russo. A materialização dessa tendência tem sido bastante visível na Ucrânia desde a revolução de Maidan em 2014, caracterizada por seu ultranacionalismo ucraniano de extrema direita e sua reescrita da história.
Varsóvia conhece bem a política da memória e suas guerras narrativas. Ironicamente, Sebastian Kęciek, o embaixador polonês na Hungria, recentemente criticou o principal general de seu país anfitrião, Gábor Böröndi, por descrever a Segunda Guerra Mundial como a escalada de um “conflito local” entre Alemanha e Polônia. Kęciek escreveu que essas palavras poderiam ser interpretadas como “acusar meu país de ser cúmplice e causar uma escalada de tensões que resultou num conflito global - uma distorção inaceitável da história”.
Desentendimentos históricos sobre a Segunda Guerra Mundial também vêm prejudicando as relações bilaterais da Polônia com outro aliado próximo, a Ucrânia. Com as leis de “des-comunização” da Ucrânia de 2015, criticar os combatentes que lutaram pela independência ucraniana passou a ser algo punido por lei e isso inclui os soldados do Exército Insurgente da Ucrânia (UPA), que notoriamente aliaram-se às Waffen-SS do Terceiro Reich alemão (nazista) e cometeram vários crimes de guerra contra os poloneses.
Stepan Bandera, da UPA, por exemplo, é um herói nacional na Ucrânia desde 2014. Em fevereiro, enquanto o Parlamento ucraniano o homenageava, o primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki, por sua vez, manifestava seu repúdio a todos que exaltaram Bandera, descrevendo como genocídio o assassinato brutal de 100.000 a 200.000 poloneses étnicos. Ele acrescentou: “Foi um genocídio. Nós sempre lutaremos para que isso seja lembrado. Não concordo com a relativização desse crime.”
As rivalidades geopolíticas polaco-alemãs dentro do bloco europeu também estão emolduradas pela linguagem dos ressentimentos históricos. Como escrevi, Varsóvia está agora lançando uma campanha jurídica contra Berlim em torno das reparações e indenizações da Segunda Guerra Mundial. Os tribunais alemães, por sua vez, em 8 de maio, proibiram as bandeiras soviética e russa durante as “comemorações da Segunda Guerra Mundial” - 9 de maio, é claro, é o Dia da Vitória, quando a União Soviética derrotou a Alemanha nazista. Durante décadas, o nazifascismo foi a “sombra” do Ocidente e o triunfo dos Aliados sobre ele foi celebrado como a vitória da democracia e dos verdadeiros valores ocidentais. Esta narrativa ocidental, no entanto, está em curto-circuito, uma vez que o Ocidente agora julga oportuno reescrever a História, dela apagando – absurdamente - a Rússia, ao mesmo tempo em que acoberta e abafa o flagrante neonazismo do regimento ucraniano de Azov.
As políticas da memória têm, de fato, profundas implicações geopolíticas, pois as disputas sobre o passado impactam o presente e o futuro, uma vez que são moldadas por certas visões e princípios. A Segunda Guerra Mundial, de fato, permanece um assunto inacabado na política da Europa Oriental e Ocidental.
Comentarios