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Anarquista da velha guarda - O Brasil precisa de Proudhon?

“Os últimos sonhadores, olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão desesperando da quarta hora de Justiça de Proudhon.”

Raul Pompéia


Pierre-Joseph Proudhon morreu em 19 de janeiro de 1865, aos 56 anos. Poucos anos após sua morte, algumas de suas ideias se tornaram fundamentais para o que hoje entendemos como a Comuna de Paris e, mais tarde, para várias correntes do anarquismo. Como muitos protagonistas do anarquismo “clássico”, Proudhon é uma figura profundamente ambivalente, segundo a perspectiva hodierna.


Por um lado, devemos a ele os primeiros fundamentos teóricos para diversas vertentes do anarquismo: crítica da propriedade, do estado e da religião; federalismo, mutualismo e autogestão dos trabalhadores; e uma âncora na ciência social. Proudhon influenciou figuras tão diversas quanto Bakunin e Tolstoi, e Kropotkin o chamou de “o pai do anarquismo”.


Por outro lado, Proudhon também foi uma influência importante para figuras como Georges Sorel (Reflexões sobre a violência), Richard Wagner e as organizações protofascistas Cercle Proudhon e Action Française, e ficamos chocados por declarações antissemitas e misóginas em sua obra. Embora esses aspectos sejam indesculpáveis, o contexto histórico nos ajuda a elucidá-los mais precisamente.


O antissemitismo de Proudhon está enraizado nas tendências estruturais do pensamento socialista de sua época. A equivalência grosseira e falsa de “judeus = capitalistas” era então comum no discurso socialista. Rebentações antissemitas — embora o termo em si ainda não existisse — também podem ser encontradas nos escritos dos primeiros socialistas como Charles Fourier (Le Nouveau Monde industriel et sociétaire) e, notoriamente, Karl Marx (parte 2 de Sobre a questão judaica), ele próprio um judeu, um membro da família Mordechai.


No caso de Proudhon, certas declarações também são frutos de sua animosidade pessoal em relação aos críticos que ele incluiu sob o rótulo de “judeus”, como Heinrich Heine (Atta Troll) ou novamente Marx (A miséria da filosofia).

Proudhon também não está sozinho em sua misoginia. As declarações e ações de muitos anarquistas foram (e permanecem até hoje) marcadas por uma hostilidade inegável perante as mulheres.





A influência de Proudhon

Quanto aos aspectos mais positivos de seu pensamento, vale a pena se engajar em pelo menos três das suas ideias: a crítica da propriedade, o mutualismo e a autogestão dos trabalhadores.

A proclamação frequentemente citada — "Propriedade é roubo!" — é a quintessência do que Proudhon analisou em sua primeira grande obra, O que é propriedade?, cujo apêndice apresenta o famoso diálogo em que ele se declara anarquista e reivindica o termo, ressignificando um conceito outrora pejorativo.

A ideia em si — a caracterização da propriedade como roubo — não era nova. Pode ser encontrada em Jean-Jacques Rousseau (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens) e até mesmo no controverso Marquês de Sade (Justine, ou les Malheurs de la vertu). No entanto, foi por meio das ideias de Proudhon que frações do movimento socialista passaram a desafiar radicalmente o conceito de propriedade pela primeira vez. Entre seus leitores entusiasmados estava seu posterior adversário Karl Marx, que em 1844 o convidou a contribuir para seu Anais Alemão-Francês, para o qual Michael Bakunin também escreveu.


Por mutualismo, Proudhon queria dizer uma forma de troca social e econômica baseada em ajuda mútua, cooperação e troca voluntária — livre de exploração capitalista. Ele desenvolveu esse conceito em obras como “De la création de l'ordre dans l'humanité”, “Sobre a criação da ordem entre a humanidade” e “A filosofia da miséria”. Um exemplo prático de mutualismo foi seu projeto de curta duração de um Banco do Povo (Banque du Peuple) e Banco do Câmbio, oferecendo empréstimos sem juros, que acabou sendo banido pelo Estado.


Até certo ponto, os programas de microcrédito implementados em projetos de cooperação para o desenvolvimento hoje podem ser vistos como uma forma diluída de mutualismo. O que se abstrai da concepção de mutualismo de Proudhon, entretanto, é uma crítica do valor ou da lógica da troca em si.


Intimamente ligada ao conceito de mutualismo está a ideia de autogestão dos trabalhadores, que foi implementada pelos seguidores de Proudhon na Comuna de Paris (e em Comunas livres em outras cidades francesas). Em sua obra publicada postumamente, Da Capacidade política da classe operária, ele desenvolveu pela primeira vez a ideia de autogestão, que desde então se tornou inseparável do anarquismo e do comunismo libertário. Ressonâncias dessas ideias podem ser vistas na experiência da federação de cooperativas espanholas, a Mondragon, embora abstraída do sindicalismo revolucionário baseado nas concepções de Sorel, de Édouard Berth e, mais indiretamente, de Proudhon. Esse aspecto axial do proudhonismo e o distributismo guardam semelhanças entre si, ambos pleiteando o avanço e consolidação da pequena propriedade, das cooperativas, das propriedades familiares, de arranjos semelhantes às guildas, de grupos paroquiais de ajuda mútua e de crédito (distributismo), a cogestão em grandes empresas. "Nós defendemos com unhas e dentes o direito à propriedade, porque achamos uma coisa tão boa que a queremos estendê-la para todos os brasileiros”, dizia Brizola. Uma divisa que poderia ter sido da lavra do profícuo pensador francês.


Então, o Brasil precisa de Proudhon? Getúlio Vargas se dizia saint-simoniano, quer dizer, um socialista não marxista, assim como os proudhonianos. Em uma época não tão distante da Revolução de 1930, o florianista Raul Pompéia assumia a doutrina de Pierre-Joseph Proudhon com diapasão quase escatológico. Lembrando que o castilhismo-florianismo é um dos eixos do período mais revolucionário da nossa história, qual seja, o Estado Novo. Finalmente, sua obra deve ser considerada em seu contexto histórico, e com todas as suas contradições. Apesar das críticas pertinentes, ela continua sendo basilar e pode servir como fonte de inspiração para um trabalhismo redivivo.


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