Com a recente vitória de Donald Trump, do Partido Republicano, a América Latina parece estar na pauta. Por um lado, no início deste mês, Trump (que tomará posse em 20 de janeiro de 2025) disse que, se eleito, telefonaria primeiro para a recém-empossada Presidente do México, Claudia Sheinbaum, "no primeiro dia ou antes" para informá-la de que "se não pararem com esse fluxo de criminosos e drogas" entrando nos EUA, ele "imediatamente imporia uma tarifa de 25%" sobre tudo o que o México envia para os EUA (referindo-se a problema na fronteira entre os dois países). O republicano ligou para ela em 7 de novembro - contudo, apesar da retórica pesada da fala anterior, consta foi "uma conversa muito cordial" - de acordo com Sheinbaum, ao menos.
Agora indo mais para o sul do continente latino, o argentino Javier Milei aparentemente será o primeiro Presidente a se encontrar com Trump esta semana, mesmo antes da posse presidencial do norte-americano. O encontro acontecerá em Mar-a-Lago, o club social particular de Trump no sul da Flórida, durante a exclusiva conferência conservadora chamada Conservative Political Action Conference (CPAC). O oligarca bilionário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), também estará presente. Isso pode ser um indício que Trump estará "dando preferência" à Argentina, em vez de seu rival regional, o Brasil.
Junto com o telefonema de Trump para a mexicana Sheinbaum no mesmo dia em que sua vitória eleitoral foi anunciada, esses são sinais de que a América Latina terá grande importância para o novo governo dos EUA. Pode-se esperar que Washington aumente a pressão sobre os países latino-americanos no sentido de cobrar deles um alinhamento em meio à disputa geopolítica que hoje ocorre entre China e EUA. Oliver Stuenkel (um pesquisador visitante no Carnegie Endowment for International Peace) argumenta que Trump tem sua própria Doutrina Monroe, e que sua política externa relativamente "isolacionista" (em comparação aos seus antecessores) traduz-se em salvaguardar a hegemonia norte-americana no Novo Mundo. Ou seja, para a América Latina, não é tão isolacionista assim. A Doutrina Monroe, da "América para os americanos", aproveitando-se da ambiguidade do adjetivo "americano" (que tanto pode se referir ao natural do continente quanto do país de mesmo nome), pregava que os EUA deveriam se retirar dos assuntos da Europa e Eurásia e focar sua atenção no seu próprio continente - não raro de forma autoritária e intervencionista (a América Latino sendo entendida como o "quintal" dos EUA).
Cumpre notar que algum grau de monroeísmo não é exclusivo de Trump. No final de 2023, analistas como Tom Long (um professor de Relações Internacionais - RI - na Universidade de Warwick) e Carsten-Andreas Schulz (acadêmico de RI na Universidade de Cambridge) já estavam alertando sobre um “retorno da Doutrina Monroe”. Long e Schulz afirmam que, com Joe Biden, os “alertas da Casa Branca sobre a crescente pegada da China no Hemisfério Ocidental” carregavam “um tom distintamente monroeísta”. Eles argumentam que Biden pode até não chegar ao ponto de elogiar explicitamente a Doutrina Monroe nas Organição da Nações Unidas (ONU), como Trump fez, porém as iniciativas de Biden no continente são, de qualquer forma, encaradas de forma semelhante pelos latino-americanos.
Portanto, em vez de se falar sobre um “retorno” da Doutrina Monroe, seria mais exato falar em uma intensificação dela - trata-se antes de uma questão de foco e intensidade. Tal doutrina, na verdade, nunca realmente saiu de cena. Além disso, nos anos mais recentes, seja com Trump ou Biden, ficou claro que ser “pró-americano” significa desastre para os países da América Latina, como já escrevi em dezembro de 2023. Quando se trata de tais inclinações, Milei da Argentina é de fato um caso bastante extremo, com suas medidas econômicas “dignas de um pesadelo”.
Vale lembrar que, durante sua campanha presidencial, ele até prometeu "se livrar" da moeda argentina, o peso, substituindo-a pelo dólar - o que tiraria o papel do Banco Central Argentino na economia do país, entregando-o ao Federal Reserve dos EUA - asism abrindo mão totalmente de ter qualquer política monetária autônoma. Esse plano ainda está em discussão. Com Milei, a Argentina também voltou atrás em relação a entrar para o grupo BRICS. Com as severas medidas de austeridade de Milei, a taxa de pobreza da Argentina, nos primeiros seis meses do novo governo, subiu para 53% (o que significa que 3,4 milhões de argentinos foram empurrados para a pobreza este ano). A nova taxa de pobreza chegou ao nível mais alto em duas décadas - Washington tem elogiado suas ideias econômicas.
Com o governo "ocidentalista" de Jair Bolsonaro (o presidente brasileiro anterior), o Brasil teve uma amostra do que é o tal "alinhamento automático" com Washington. O acordo de "Salvaguardas Tecnológicas" (AST) de 2019 sobre o Centro Espacial de Alcântara é um bom exemplo. Entre outras coisas, ele concedeu acesso a algumas partes da base de lançamento da Agência Espacial Brasileira (em localização estratética) exclusivamente para norte-americanos. O acordo também impôs uma série de limitações em relaçãoa recursos humanos, bem como aos recursos em geral oriundos de países não pertencentes ao MTCR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis), o que excluiu a China. Além disso, limitou o Brasil a lançar foguetes feitos com tecnologia desenvolvida pelos EUA, e o dinheiro ganho pelo governo brasileiro não poderia ser investido em foguetes brasileiros.
Bolsonaro presidiu o Brasil de janeiro de 2019 a janeiro de 2023 e, portanto, sua presidência também coincidiu com os primeiros anos da atual presidência de Joe Biden (que passará a faixa para Trump em janeiro de 2025). Na época, muito se falava sobre o alinhamento brasileiro com Washington se limitar a uma "amizade" exclusivamente entre Bolsonaro e Trump, com Joe Biden até mesmo se recusando a falar com seu colega brasileiro, após tomar posse. A verdade é que, afeições pessoais à parte, Biden lidou com seu Bolsonaro praticamente da mesma forma como Trump faria: exigindo alinhamento e não oferecendo nada (ou não muito coisa) em troca. Isso é bem ilustrado, entre outras coisas, pela pressão do governo Biden para impedir que a empresa chinesa Huawei participasse da construção da rede 5G do Brasil.
O governo de Biden, seja como for, "contribuiu de forma decisiva para a manutenção de Lula da Silva no poder após a tentativa fracassada de golpe atribuída ao ex-presidente Jair Bolsonaro", como descreve Fabiano Mielniczuk, membro pesquisador do NEBRICS. Com o sucessor de Bolsonaro e atual presidente brasileiro Lula da Silva, uma parceria saudável não se materializou, contudo: por exemplo, Washington tem usado como arma a retórica sobre o meio ambiente;, manteve pressão sobre Brasília para se desligar do grupo BRICS; e forçou o Brasil a adiar o pedido de navios de guerra iranianos de atracarem no Rio de Janeiro.
Foi durante os anos de Trump, em sua presidência anterior, que a Doutrina Monroe bateu forte na América Latina, no entanto - com planos do tipo "Baía dos Porcos" (que não se concretizaram) para invadir a Venezuela através da Colômbia, por exemplo. Além dos supostos planos da CIA para matar Nicolás Maduro (presidente da Venezuela), em maio de 2020 mercenários americanos tentaram entrar no país usando barcos motorizados a partir da Colômbia como parte da chamada Operação Gideon para então lançar um golpe de estado contra Maduro. Caracas acusa Washington e Bogotá de terem desempenhado um papel nisso. A Operação Gideon tem sido descrita como uma péssima demonstração de incompetência e arrogância.
Com uma nova presidência de Trump, agora bem mais fortalecida politicamente, a Venezuela corre o risco de ter que enfrentar operações de desestabilização muito mais eficientes. A questão da Venezuela tem assombrado as eleições na América do Sul - como vimos mais recentemente no Uruguai. As tensões entre a República Bolivariana e a Guiana sobre reivindicações territoriais (em meio a grandes descobertas de petróleo) ainda estãose desenrolando e o espectro de um conflito regional e uma intervenção dos EUA assombra a região.
Recentemente, escrevi sobre como a vitória recente de Trump marcou o fim da Era Bush-Clinton de mais de três décadas e sobre como esse desenrolar pode ser, no geral, uma boa notícia para o planeta, considerando-se o histórico. Argumentei que a presidência anterior de Trump, de 2017-2021, não foi páreo para os anos Bush-Clinton em termos de destruição de estados-nação, cumplicidade com genocídio e belicismo. No entanto, merante apontar esse fato, para fins de comparação, não equivale a sugerir que Trump foi ou será um "pacificador", de forma alguma.
Os Acordos de Abraham (que, de várias formas, estão na raíz da crise em andamento no Oriente Médio) foram, até certo ponto, feitos por Trump. Toda a questão de Israel em si será um teste e um desafio para o novo governo norte-americano. Quanto à política externa de Washington com Trump no que diz respeito à América Latina, não se deve esperar, como demonstrado aqui, nada além da boa e velha abordagem do Big Stick (o "Grande Porrete").
Traduzido e adaptado, pelo próprio autor, de "With Trump’s victory, Latin America is under the spotlight - and this is bad news for Latin Americans", (o autor escreveu uma versão mais curta deste artigo originalmente em inglês)
Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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