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Gilberto Freyre velho, duplamente hispânico (III)

Leia a Parte 2 aqui


Freyre havia conhecido os legados hispânicos na Califórnia, mas, até a publicação de Casa-grande & senzala (1933), não conhecia muito sobre Paraguai, Peru ou Venezuela. Uma vez que conheceu as diferentes realidades hispano-americanas e estabeleceu diferenças de grau, finalmente seu iberismo metodológico também se confirmará no âmbito puramente antropológico. Será a partir de 1956, que estabelecerá uma unidade antropológica – com matizes – da ação colonizadora ibérica, com o lançamento do termo “hispanotropicologia”. Este termo será desconhecido em Portugal porque o Instituto de Cultura Hispânica era censurado, nos tempos de Salazar, também porque Adriano Moreira, a principal referência institucional do lusotropicalismo, não quis divulgá-lo e, em grande medida, ficou em silêncio.



Na hemeroteca do Diário de Pernambuco, há um total de 29 referências à hispanotropicologia. No dia 10 de julho de 1956, na inauguração dos cursos de verão de El Escorial - cidade de onde Filipe II da Espanha (conhecido como Filipe I, em Portugal) governou o mundo ibérico, símbolo do renascimento hispânico - Freyre falou sobre “algunos aspectos de la coloniziación europea de los trópicos: el método ibérico y otros”. Apesar disso, a apresentação explícita da hispanotropicologia, uns meses depois, deu-se em uma conferência intitulada Em torno do esforço franciscano no Brasil, no claustro do convento franciscano de Santo Antônio, no Recife, na noite de 26 de outubro de 1956, por ocasião das comemorações dos 350 anos da fundação do convento (1606). Freyre afirmará que “o convento é tão de Recife que sem ele não se concebe a paisagem, a vida ou a cultura recifense, é mais que história, é intra-história”, como diria Unamuno. “Foi sobre esta pedra que se edificou a civilização recifense”. Essa presença seria um “estar sendo”, segundo disse Gilberto, de maneira orteguiana.


A viagem à Espanha, em 1956, influenciou o lançamento e a generosa difusão do conceito de hispano-tropical, como ampliação do luso-tropical, em diferentes publicações e conferências, que apareceram reunidas no livro A propósito de frades, publicado pela Universidade da Bahia em 1959, com o subtítulo Sugestões em torno da influência de religiosos de São Francisco e de outras ordens sobre o desenvolvimento de modernas civilizações cristãs, especialmente das hispânicas nos trópicos.


Um de seus discípulos mais próximos, Marco Aurélio de Alcântara, da equipe de pesquisadores do então Instituto Joaquim Nabuco (posteriormente Fundação) apresentou na Espanha Las bases de uma Hispanotropicologia: el concepto de tempo en el arte y la vida hispánicas, em dezembro de 1958, na cátedra de Filosofia Social da Universidade de Madri - texto esse que chegou a ser lido e reconhecido em seu exílio por Américo Castro, amigo do mestre de Apipucos.


A antropologia da América ibérica (Ibero-América), estudada, hoje em dia, na Universidade de Salamanca, estaria localizada dentro do conceito teórico da hispanotropicologia. Apesar disso, a hispanotropicologia tem mais elementos que transbordam a antropologia, constituindo um conjunto de ideias sistemáticas que podemos descrever como idearium filosófico.


A hispanotropicologia é uma sistemática de estudo teórico, aplicável dentro de uma possível tropicologia, como sugestão de aspiração de ciência por se desenvolver, cujo presente forma um campo de estudos ainda difuso. A tropicologia é também tropicalismo; materialmente, reflete-se no seminário interdisciplinar da Fundação Joaquim Nabuco, com mais de 400 edições e na revista Ciência & Trópico, publicação semestral desde 1973. A tropicologia é interpenetração barroca de culturas e interculturalidade. A tropicologia é uma "filosofia antropoecológica”, um “relativismo cultural” boasisano à brasileira, com uma contribuição para a epistemologia, tanto na perspectiva do “tempo tríbio”, quanto no equilíbrio de contrários” (paradoxos). E é também uma contribuição humanista para a ética ecológica, cristocêntrica e intercultural dos povos hispânico-tropicais, tendo por paradigma a atitude franciscana. Desta forma, podemos dizer que o tropicalismo é hispanotropicologia - apesar de nem toda hispanotropicologia ser tropicalismo.


Tropicalismo é, em suma, o conjunto de saberes literários e estéticos expressionistas a serviço do conhecimento dos trópicos, quer dizer, da tropicologia. Tropicalismo, também, é política, mas não do tipo salazarista. É política conservadora, revolucionária e pan-iberista, a um só tempo. Tropicalismo pode ser entendido como a valorização da cultura negra e ameríndia (melanismo). É a aptidão do colonizador ibérico de aprender delas, incorporando a cultura do Outro, do subalterno, na cultura dominante, inclusive sem estar consciente desse processo. Nesse sentido, a tropicalidade tem uma conexão com a mediterraneidade medieval e antiga. Tropicalismo é, ao mesmo tempo, barroco e neobarroco.


Na VIII Reunião do Seminário de Tropicologia em 1980, Gilberto Freyre explicou que, em seu itinerário tropicalista, primeiro criou “o conceito de Lusotropicalismo, depois desdobrado em Lusotropicologia, alargado em Hispanotropicologia e parte vital de uma reformulada, sob perspectiva inovadoramente existencial, Tropicologia”.



Dentro de seu itinerário biográfico e bibliográfico, destaca-se a visita de 1956 à Espanha, como convidado do Instituto de Cultura Hispânica, que foi equivalente a um relançamento do velho interesse antropológico de Freyre pela Espanha, dos anos 20 e 30. Depois de um período de distanciamento devido à política falangista do pós-guerra, os conservadores católicos, agora no poder dentro do regime franquista e, em particular, no Instituto de Cultura Hispânica, se entusiasmam com o hispanismo brasileiro de Gilberto Freyre. Inclusive, Freyre é convidado, em duas ocasiões, a fazer o discurso no Dia de la Hispanidad, na Espanha, ao qual, no fim, não pode comparecer por questões econômicas e de agenda. Nomeiam Freyre como membro de honra do Instituto de Cultura Hispânica e como participante da conferência sobre hispanidade na Bahia e em Pernambuco. Nunca deixará seu ativismo hispanista até a sua morte.


A título de conclusão, direi que o que Freyre nos deixou como legado é a necessidade de reconhecer a existência de uma macroárea cultural pan-ibérica que carrega potencial geopolítico. A vontade e perspectiva iberista esteve sempre presente nas suas análises históricas, culturais, linguísticas e literárias, como atestam as suas ideias sobre o domjuanismo, o regionalismo, o bilinguismo, o misticismo e o ensaísmo. No entanto, manteve certas ambiguidades ibéricas — na perspectiva antropológica e geopolítica — até meados dos anos cinquenta, quando — finalmente — Gilberto confirmou seu iberismo antropológico e geopolítico e desenvolveu seu iberismo filosófico com suas propostas:


• A hispanotropicologia (em sentido estrito) como unificadora do padrão antropológico mixófílo, no quadro ibérico de um estudo sistemático e de um paradigma franciscano. Ambos os colonizadores (ibéricos) criaram famílias mistas e canais de comunicação sociológicos interraciais.


• Hispanidade Pan-ibérica (federação de cultura entre os países de língua espanhola e portuguesa), com sua adesão à ideologia do Instituto de Cultura Hispânica, em grande parte materializada na Comunidade Ibero-Americana de Nações, quatro anos após a morte do mestre de Apipucos. Hoje falaríamos de Iberofonia para acrescentar todos os continentes.


• Humanismo Cientista e Filosofia Hispânica do Tempo, cujas hipóteses se iniciam nos anos 50, desenvolvem-se nos anos 60 e são publicadas predominantemente nos anos 70 (Além do apenas moderno e O Brasileiro entre os outros hispanos).


Mesmo pouco tempo depois de defender a minha tese sobre Gilberto Freyre e Espanha, em Salamanca, e de organizar um evento no 50º aniversário da visita institucional a Salamanca e de reunir numerosos pesquisadores num congresso freyriano em Salamanca, poucos dias antes do confinamento, o meu orientador de Tese, Mário Hélio Gomes de Lima, achou este texto de Freyre — no Diário de Pernambuco do dia 5 de março de 1967 — que confirmou totalmente minha hipótese:


«Estarei pleiteando uma homenagem da Universidade espanhola de Salamanca? É outra pergunta que me faz outro curioso, atento a atualidades ibéricas. Respondo que não: de modo algum. Não pleiteio – nem pleiteei – nem cargos nem honrarias nem homenagens nacionais ou estrangeiras, acadêmicas ou governamentais. O que disse a amigos espanhóis, a propósito de um possível reconhecimento, da parte da Espanha, DO MEU, NA VERDADE, CONSTANTE E INTENSO IBERISMO, foi que, nesse caso, a homenagem que mais estimaria, não seria nenhuma, convencionalmente oficial ou acadêmica, mas a que procedesse da Universidade de Salamanca, impregnada do espírito castiçamente ibérico, na sua própria independência quixotesca, do meu queridíssimo Unamuno».


Após do frustrado honoris causa em vida, ficou então minha tese como uma reparação e uma homenagem da Espanha para Gilberto Freyre.

Pablo González Velasco – Brasilianista espanhol, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca, coordenador de ELTRAPEZIO.EU e especialista em iberismo e neobarroco, bem como na vida e obra de Gilberto Freyre e Américo Castro. Possui um blog chamado “Observatório de Geopolítica Panibérica”.

Leia Parte 2aqui e a parte 1 aqui

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