Em sua introdução para The Cambridge Companion to Plotinus, uma coletânea de artigos sobre Plotino assinada por vários autores, Lloyd P. Gerson diz que “geralmente os pensadores são chamados de ‘neo’ com um pouco de desdém” [tradução nossa] [1]. Na sequência, o autor completa:
“Isso me soa muito estranho, já que por muito tempo o ‘novo’ tem sido praticamente sinônimo de ‘bom’ em nossa cultura” [tradução nossa] [2].
Não obstante, e deixando de lado a ironia do acadêmico inglês, a sequência do texto em questão nos informa que a utilização das definições “neoplatonismo” e “neoplatônico” remete à uma tendência do século XVIII, termos que eram utilizados pelos historiadores com o objetivo de indicar uma fase no desenvolvimento da história do Platonismo.
Em Neoplatonic Philosophy; Introductory Readings, John Dillon e Gerson afirmam que o termo “neoplatonismo” é um “artefato” dos estudos acadêmicos da Alemanha do século XIX e transparece uma tendência, imperante à época, de sistematizar a história em fases ou períodos identificados por nomes específicos.
Assim, embora o prefixo “neo” pressuponha a existência de algo novo nesse pensamento, é preciso ter em mente que Plotino [3] iria preferir ser considerado um expositor não inovador e sim defensor fiel dos ensinamentos de Platão. De todo modo, essa convicção não deve ser tomada ao pé da letra — há que se reconhecer que Plotino concebeu uma filosofia original no marco da tradição platônica, embora sua originalidade não possa ser atribuída a uma intenção consciente de desenvolver algo “novo”.
Sobre a questão da originalidade na filosofia do período helenístico, Hadot observa o seguinte:
“como todas as produções dos últimos estágios da antiguidade, as Enéadas servem a propósitos de uma natureza completamente diferente. Aqui, originalidade é um defeito, inovação é suspeita, e fidelidade à tradição, um dever” [tradução nossa] [4]
— o comentário evoca a passagem V.1.[10].8 das Enéadas. Nesse trecho, Plotino afirma não serem novidades as doutrinas que expõe, mas que, em realidade, trata-se de explicações de antigos ensinamentos encontrados nos escritos de Platão — prova inequívoca, segundo Plotino, de que a doutrina exposta já é conhecida há muito tempo.
Assim sendo, surge a questão: qual é a diferença entre o platonismo que encontramos em Plotino e os ensinamentos legados por Platão?
De acordo com Gerson, o melhor caminho para responder a esse questionamento passa pela distinção entre o platonismo de Plotino e o de Platão e, também, a distinção entre o primeiro e as outras versões do neoplatonismo que lhe sucederam. Para o acadêmico inglês, a diferença fundamental está marcada no esforço de Plotino em responder as objeções mais consistentes levantadas contra o platonismo.
Essas objeções, em sua maioria aristotélicas e estoicas, estão sustentadas em interpretações específicas das afirmações de Platão. O platonismo de Plotino é, em grande medida, a reelaboração dos argumentos de Platão com o intuito de responder àquelas objeções.
Essas reelaborações, entretanto, dificilmente correspondem de maneira precisa ao texto que encontramos nos diálogos platônicos e, portanto, é fundamental distinguir se elas representam uma leitura fiel aos argumentos de Platão ou conclusões plausíveis destes, ou, novas afirmações que estão de alguma maneira embasadas no texto platônico — devemos também considerar a possibilidade de que as reformulações sejam uma amálgama de todos esses casos.
Para Cícero Bezerra, o pensamento plotiniano surge e se desenvolve a partir de um diálogo com uma tradição que encontra sua origem e fundamento nos escritos de Platão. Bezerra coloca duas questões fundamentais: “A obra platônica possibilitaria uma leitura neoplatônica? Devemos falar de ruptura ou continuidade?”.
Tentar responder a esses questionamentos é tarefa muito difícil e que requer, em primeiro lugar, algumas aclarações acerca de uma discussão clássica no campo dos estudos da filosofia platônica. Trata-se da discussão sobre duas linhas interpretativas da obra de Platão:
a) a que se baseia exclusivamente nos escritos de Platão e;
b) a que se pauta na tradição oral ou nas chamadas “doutrinas não escritas”.
Ao referir-se à tradição oral em Platão, Giovanni Reale destaca a importância da concepção da teoria dos princípios, da derivação da Díade a partir do Uno, para a metafísica dos filósofos neoplatônicos. O historiador da filosofia italiano argumenta que se não fosse pelas “doutrinas não escritas”, seria impossível explicar a inovação sistemática introduzida por esses filósofos. Mas, afinal, em que consistem as “doutrinas não escritas”?
Deixando de lado a polêmica entre os defensores dos diálogos e os desta tradição oral, uma vez que seria demasiado extenso e fora de propósito suscitar tal discussão neste breve texto, pretendemos expor, em linhas gerais, o que se entende por “doutrinas não escritas” e qual sua importância para a nossa discussão. Bezerra afirma que:
Como o próprio nome sugere, refere-se às lições orais que Platão teria, segundo uma tradição de discípulos, inclusive Aristóteles, proferido na Academia e que teria se recusado a escrever por tratarem de um conteúdo que “transcenderia” a forma da escritura, permanecendo, assim, reservado à oralidade dialética.
Amparado em Hans J. Krämer, Bezerra enfatiza que a tradição indireta das “doutrinas não escritas” não apenas completa os ensinamentos da filosofia platônica, mas também contribui, em diversos aspectos, para uma melhor compreensão dos diálogos platônicos. Essa tradição oral indireta poderia servir para melhor entender ou preencher algumas lacunas que os próprios diálogos deixam em aberto ou não são capazes de resolver.
Não se trata, de forma alguma, de desconsiderar ou rebaixar a importância da obra escrita de Platão, mas de tentar aprofundar o tema da teoria dos princípios e os temas desenvolvidos nos diálogos. Krämer acredita que é nesse conjunto de ensinamentos transmitidos através da oralidade que encontramos a chave para entender a continuidade da tradição platônica através dos neoplatônicos.
O conceito de Nous, por exemplo, que é tema central para a filosofia de Plotino, remonta a uma concepção metafísica presente na tradição da antiga Academia, em autores como Espeusipo e Xenócrates. Outro exemplo, comentado por Bezerra, é a ideia de que “todo ser existente é ser na medida em que participa da pura unidade” — tema que será retomado e aprofundado pelos autores neoplatônicos. Esse modo de compreender o platonismo, que evidencia um desenvolvimento contínuo e constante de temas próprios da tradição platônica, nos fornece uma chave que possibilita traçar uma linha de sucessão comum entre a filosofia de Platão e o neoplatonismo.
No que tange, mais especificamente, às doutrinas platônicas retomadas e desenvolvidas pelo filósofo de Licópolis, Gerson afirma ser incontestável que Plotino adere aos princípios que fundamentam qualquer versão de uma Teoria das Ideias. O autor inglês expõem esses princípios da seguinte maneira:
[…] que a verdade eterna existe; que verdades eternas são verdades sobre entidades eternas; e que a verdade eterna é complexa. Além disso, Plotino compartilha com Platão o princípio de que verdades eternas e a realidade que as fundamenta possui um estatuto paradigmático para o mundo sensível, de modo que o último representa ou imita ou participa do primeiro. Por fim, e isso é só um pouco mais controverso, ele compartilha com Platão o princípio de que a eterna complexidade ou multiplicidade não pode ser o extremo último. Isso é, deve haver um primeiro princípio de tudo que é absolutamente simples e permanece em algum tipo de relação causal com o complexo que corresponde à verdade eterna. [tradução nossa] [5]
Se considerarmos a questão da imortalidade da alma, é possível partir de um argumento similar — lembrando que, tanto para Platão quanto para Plotino, o homem não é o seu corpo; o destino do homem transcende essa dimensão corporal e é superior a qualquer estado em que a alma se encontre encarnada. É interessante observar que esse posicionamento distancia ambos filósofos do pensamento dos estoicos, aristotélicos, epicuristas, cristãos e outros.
No entanto, os ensinamentos de Platão acerca da alma encarnada e separada do corpo são controversos e obscuros — Plotino reconhece, por vezes, a obscuridade dos diálogos em relação a esse tema. Frente às objeções levantadas contra o platonismo no que concerne o tema do dualismo alma-corpo, Plotino provavelmente acreditava defender afirmações que seriam reconhecidas por Platão como verdadeiras ou possíveis respostas que teria formulado aos problemas levantados por essas objeções.
Referências:
[1] “Usually thinkers are referred to as ‘neo’ with a bit of a sneer.”
[2] “This seems to me rather odd, since for a long time ‘new’ has been practically a synonym for ‘good’ in our culture.”
[3] Assim como os neoplatônicos que o precederam.
[4] “[…] like all productions of the last stages of antiquity, the Enneads are subject to servitudes of a wholly different nature. Here, originality is a defect, innovation is suspect, and fidelity to tradition, a duty”. Neste passo, Hadot refere-se, a título de comparação, à importância da originalidade em composições modernas. O filósofo francês cita como exemplo o romance Madame Bovary de Gustave Flaubert.
[5] “[…] that eternal truth exists; that eternal truths ate truths about eternal entities; and that eternal truth is complex. In addition, Plotinus shares with Plato the principle that eternal truths and the reality which grounds then have a paradigmatic status for the sensible world, such that the latter represents or imitates or shares in the former. Finally, and this is only slightly more controversial, he shares with Plato the principle that eternal complexity or multiplicity cannot be ultimate. That is, there: must be some first principle of all that is absolutely simple and stands in some sort of causal relation to the complex that accounts for eternal truth.”
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