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Quando ciência e sabedoria popular coincidem: a Amazônia está a cada ano mais quente mais seca

A seca na Amazônia deste ano atingiu de fato níveis alarmantes. As imagens da mortandade de peixes e botos, bem como quilômetros de praias descobertas onde antes corriam rios caudalosos falam por si, revelando a gravidade da situação.


Neste caso, a questão climática não é sentida em Paris ou Nova Yorque, mas causa danos imediatos à população local. A falta de peixe é um problema gravíssimo onde a pesca é a principal fonte de subsistência. A navegação fluvial, principal meio de transporte na Amazônia é igualmente prejudicada e dificulta a chegada de itens de primeira necessidade em algumas localidades.


Em parte da Amazônia Ocidental, ocorre ainda um efeito colateral secundário que é o ataque mais intenso e frequente da praga do mandarová: uma lagarta que ataca os roçados de mandioca, principal alimento cultivado na Amazônia.


Segundo especialistas na questão climática, a intensidade da seca dá pela conjugação de dois fatores. Um deles seria o fenômeno El Niño, que causa a diminuição das chuvas em parte do continente sul-americano e que neste ano estaria sendo mais severo do que o normal.


O mesmo fenômeno do El Niño, que é em parte responsável pela seca na Amazônia seria também responsável pelo aumento exponencial das chuvas no sul.


Ainda segundo os especialistas em clima, o segundo fator seria ‘antropogênico’, ou seja, direta ou indiretamente causado pela ação humana. Neste caso pesariam localmente o desmatamento na Amazônia e globalmente o aumento de gases do efeito estufa na atmosfera.


Este é um dos casos em que a ciência climatológica que opera por meio de satélites e modelos matemático sofisticados, corrobora com a observação feita pela sabedoria popular.


Durante os mais de 20 anos em que vivi na Amazônia, foi um expediente comum consultar os ‘especialistas populares’ – gente do povo acostumado a observar detalhadamente a natureza para obter informações a respeito do clima.


Ribeirinhos de origem nordestina e indígenas têm seus métodos, que muitas vezes acabam por se somar em toda uma ciência oracular popular amazônica. Durante meus anos de jornalismo na Amazônia, era comum entrevistar estes especialistas populares em clima.


Um dos métodos consiste em observar cantos dos pássaros, insetos e anfíbio. Seriam, segundo estes especialistas populares, uma forma de conhecer, e por vezes, prever, mudanças climáticas. Estes especialistas populares não foram pegos de surpresa com estas mudanças climáticas. O aumento do calor intenso e das alagações já se anunciavam no canto dos insetos, no comportamento dos animais, nas floradas de certas espécies de árvores.


Não cheguei a conhecer a fundo esses métodos caboclos, mas aprendi outros métodos, mais simples, a partir da observação dos intervalos entre as chuvas, alagações e friagens.

A partir deste método é seguro dizer que o clima está cada vez mais quente e menos chuvoso na Amazônia.


A Amazônia tem um sistema climático cuja compreensão é acessível aos moradores locais. Na região em que vivi, Cruzeiro do Sul, na Amazônia Ocidental, havia antes uma certa previsibilidade no clima.

Durante cerca de 9 meses por ano, o calor solar atingia seu pico entre meio dia e duas da tarde, causando uma chuva intensa que refrescava o ambiente e tornava a temperatura mais agradável no fim da tarde e noite. As chuvas mais intensas ocorriam entre dezembro e março, a partir de maio chegavam as friagens que costumavam durar até uma semana. A partir daí tínhamos o verão amazônico, com a quase completa cessação das chuvas até setembro, quando ocorriam fortes ventanias e o reinício das chuvas.


A cada quatro anos ocorriam chuvas mais fortes, com ela, alagações e geralmente no mesmo ano, vinham secas intensas.


Um verão amazônico (estiagem) forte é seguido de uma forte alagação, diz a sabedoria popular.

Nos últimos anos a mudança observável foi uma redução substancial na intensidade e frequência das chuvas. Ao invés de praticamente diárias, passaram a demorar três dias ou mais, com o calor alcançando novos recordes no termômetro.


As friagens, fenômeno de queda de temperatura na Amazônia, tem se dissipado cada vez mais depressa. O que antes levava de cinco a sete dias, até quinze, passou a durar apenas uma noite.

As secas e alagações mais intensas que levavam quatro anos, passaram a ocorrer de maneira anual levando municípios a manterem um plano de contingência permanente.


Todas estas são questões que devem ser pesadas. Se é possível fazer algo a respeito, esta possibilidade está justamente entre as populações amazônicas: rurais, ribeirinhas, indígenas e sobretudo, urbanas, onde está mais de 70% desta população e para onde todas as demais convergem.

No meio urbano, um dos efeitos colaterais do aumento gradual da temperatura, é o significativo aumento também dos gastos com energia elétrica para manter ventiladores e ar-condicionado ligados, bem como geladeiras e refrigeradores.


Entre os moradores de Manaus, por exemplo, o aumento nas contas de energia por conta do calor excessivo é estimado entre 30 e 40%.


Tudo isso são questões que devem ser pensadas e pesadas de maneira realista, sem cair no negacionismo por um lado, ou em um ambientalismo fantasioso que desconsidera o ser humano amazônico, por outro.

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