Texto de Caterina Resta
Tradução de João Silverio
A presente tradução refere-se a um texto de Caterina Resta, disponível no sítio eletrônico geofilosofia.it,. No breve texto, a autora discute questões relacionadas à habitação humana na modernidade, dentro do horizonte do niilismo, baseando-se em autores como Martin Heidegger, Ernst Jünger e Carl Schmitt. No âmbito da geofilosofia, o ser humano é concebido como uma abertura enraizada em seu modo de habitar, indissociavelmente ligado à terra, entendida não apenas como sua pátria, mas também como o próprio habitar geológico em sua multiplicidade. Segue a tradução abaixo
João Silvério
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Na sua célebre discussão sobre o termo Eröterung da poesia de Trakl, Heidegger detém-se a recordar como o significado originário de Ort – a palavra alemã para se dizer “lugar” – também refere-se à ponto de uma lança:
Na ponta de lança, tudo converge. No modo mais digno e extremo, o lugar [Ort] é o que reúne e recolhe para si. O recolhimento percorre tudo e em tudo prevalece. Reunindo e recolhendo, o lugar [Ort] desenvolve e preserva o que envolve, não como uma cápsula isolada mas atravessando com seu brilho e sua luz tudo o que recolhe de maneira a somente assim entregá-lo à sua essência (1).
O Lugar é aquele ponto de convergência, de reunião e de recolhimento [Versammlung] no qual, como numa ponta afiada de uma lança, em virtude de uma irresistível atração, o espaço se concentra. Centro (2) de uma cruz invisível, onde cada Lugar é também, ao mesmo tempo, umbilicus e Axis mundi, ponto de convergência entre céu e terra, a Geviert [quadratura] (3), para usar uma expressão de Heidegger, a qual indica, na sua reunião da quadratura, a encruzilhada entre céu e terra, deuses e mortais, realizando o espaço dentro do qual é possível ao homem habitar.
Desta forma, o Lugar tutela e salvaguarda a permanência do homem na terra, não como uma caixa que mantém seu precioso conteúdo fechado em si, tornando-o inacessível; mas, pelo contrário, iluminando-o e trazendo-o para aquela luz em que cada coisa pode realizar sua própria essência. É aquela abertura que, a cada vez e lugar, desvela um mundo, tornando-o habitável ao homem na recíproca correspondência entre céu e terra, mortais e divinos, no cruzamento daquelas direções em que tempo-espaço se intercedem, gerando Lugares, o vir ao mundo de uma terra-sob-o-céu, sobre a qual os mortais se confinam dentro de um limite que é próprio a cada ente, mas, ao mesmo tempo, voltados para o céu, para o silencioso chamado de um outro Lugar.
São Lugares as nossas cidades? Concedem verdadeiro espaço e tempo ao habitar? Os edifícios construídos desordenadamente no espaço urbano ainda são capazes de portar a Geviert (quadratura)? “O lugar é um abrigo da quadratura e, como ainda diz a mesma palavra, Huis, Haus, uma moradia” (4). Ainda existem Lugares ou já tomaram o controle aqueles não-Lugares dos quais Marc Augé (5) fala – os aeroportos, albergues, centros comerciais, hipermercados – como os ícones eloquentes de uma globalização homologante que apaga a diferença e cancela a singularidade dos Lugares?
As razões para esta progressiva uniformização vêm de longe. Nietzsche foi um dos primeiros a prevê-la e descrevê-la de modo mais apropriado como “um deserto que cresce”, e que não somente seca progressivamente a terra, reduzindo à paisagem desértica aquilo que antes eram terrenos férteis, mas que agora não permite o cultivo futuro. A este processo que impede qualquer medicamento possível, Nietzsche deu o nome de “niilismo europeu”, vislumbrando nele “o mais inquietante dos hóspedes”, aquela “doença mortal” que, há muito tempo estava incubada em solo europeu, e se espalharia pelo globo, identificando-se com o movimento de ocidentalização do mundo que já se mostra real em nosso tempo. A partir dele, a palavra “niilismo” reunirá as análises mais agudas da era atual, articulando, apesar dos pontos de vista diversos, os traços essenciais: será para Jünger o niilismo do Trabalhador, este sempre à serviço da técnica, que, com seu uniforme, moldará o mundo à sua própria imagem e semelhança, reduzindo tudo ao Trabalho, ao reino da quantidade e do cálculo, em um poderoso processo de unificação e uniformização planetária, em que toda diferença é destinada a desaparecer, fazendo por todo lado uma tabula rasa na sua marcha imparável. Heidegger, de maneira diversa, descreverá o niilismo como desenraizamento ou perda de raízes (Entwurzelung), como Heimtlosigkeit, “ausência de lugar” ou “ausência de pátria”, reconhecendo nele a Stimmung (tonalidade afetiva) do nosso tempo e aquela lógica interna de todo pensamento ocidental, que apenas no fim – e sobretudo a partir da Era Moderna – finalmente se torna clara. Mas certamente se deve a Carl Schmitt a análise mais detalhada do processo histórico que, por fim, conduziu a uma inexorável Entortung, a uma des-localização sem precedentes, inaugurando aquele Zeit [tempo] global no qual não somente todo o globo terrestre aparece perfeitamente abarcado num olhar totalizante, mas também, refratário de um nomos capaz de ordená-lo, com uma extensão oceânica, uma superfície lisa e indiferenciada, tal como um deserto (6).

A perda do Lugar se mostra no horizonte do niilismo como um processo que atende à lógica interna da ratio ocidental, que se tornou o único pensamento dominante sobre o globo terrestre: toda tentativa de re-localização deverá, necessariamente, enfrentar essa história, na qual o mundo se tornou o destino do próprio ocidente, sem se consolar em tentações nostálgicas e regressivas, mas, antes, avançando para além do inevitável crepúsculo do passado.
Notas:
*As notas foram levemente alteradas para que o leitor brasileiro possa se familiarizar com os textos já publicados em português.
(1) M. Heidegger, A linguagem na poesia In A caminho da linguagem São Paulo: Editora Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2003.
(2) Para o simbolismo do centro conferir R. Guénon, Símbolos fundamentais da ciência sagrada São Paulo: Editora Estrela da Manhã, 2022 e M. Eliade. Imagem e Símbolo: ensaios sobre o simbolismo mágico Editora Arcádía, Campo de Santa Clara, Portugal, 1979.
(3) Conferir, M. Heidegger, Construir, Habitar, Pensar. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback.
(4) Conferir, M. Heidegger, Construir, Habitar, Pensar. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback.
(5) Conferir. M. Augé Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Papirus Editora, 1994. Conferir também cfr. in particolare L. Bonesio, Terra, singolarità, paesaggi, in AA. VV., Orizzonti della geofilosofia. Terra e luoghi nell’epoca della mondializzazione, a cura di L. Bonesio, Arianna, Casalecchio 2000 e, de maneira mais geral, Id., Geofilosofia del paesaggio, Mimesis, Milano 1997.
(6) Para um aprofundamento desta questão crucial C. Resta, Il luogo e le vie. Geografie del pensiero in Martin Heidegger, Angeli, Milano 1996; Id., Stato mondiale o Nomos della terra. Carl Schmitt tra universo e pluriverso, Pellicani, Roma 1999; Id., Passaggi al bosco. Ernst Jünger nell’era dei Titani, Mimesis, Milano 2000 (com L. Bonesio).
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