Qualquer pessoa ou organização que pretenda comentar a explosão do crime organizado no Rio de Janeiro a partir do início dos anos 1980 tem de enfrentar, com coragem e sem lenga-lenga, a contribuição de oficiais superiores das Forças Armadas (e até de Generais) na montagem do contrabando de armas e do domínio territorial do narcotráfico e da jogatina.
Na imagem, o mafioso brasileiro Castor de Andrade
Veja-se, por exemplo, o General Amaury Kruel, que se tornou chefe de Polícia do Rio, então Distrito Federal, em 1958, e organizou um grupo de extermínio chamado ''Homens de Ouro'', bem ao gosto de certa direita atual, e prometeu para a Associação Comercial que ia fazer uma limpa na capital.
O safardana saiu do posto sob acusações de envolvimento com bicheiros, cafetões, clínicas de aborto e saiu sob protesto de vários delegados, alguns deles com certeza envolvidos nos mesmos esquemas, embora vivessem gritando que ''bandido bom é bandido morto'' ou algo similar.
Como é comum nessas máfias, Kruel ''caiu pra cima''> se tornou mais tarde comandante do II Exército, então sediado em Sampa, e participou do golpe de 1964 contra João Goulart -- em uma das maiores traições da história política brasileira, já que jurava de pé juntos que estava com o Presidente, mas foi um dos primeiros a aderir ao movimento iniciado por Mourão .
Esse era o naipe das pessoas que queriam assumir o país naqueles tempos.
Não por acaso, foi no regime civil-militar que o Clube Barão de Drummond, a cúpula do Jogo do Bicho, atingiu o ápice de seu poder, com envolvimento, por um lado, com a Cosa Nostra (máfia italiana), e com outro, com os agentes de repressão do próprio governo.
Pesquisem sobre o Capitão Guimarães, o Capitão Brito, o Major Crespo, o Coronel Freddie Perdigão Pereira [agente do SNI, inclusive], todos envolvidos com contrabando de armas e bicheiros. Leiam a obra ''Os Porões da Contravenção'' para saberem de toda a proteção e rede de influência que o Clube Barão de Drummond possuía no Cenimar, que forneceu até credencial para Castor de Andrade.
O sogro do filho do Presidente Figueiredo, de nome Ozório Paes Lopes, era sócio do maior capo do Bicho na Metalúrgica Castor. E foi o SNI [Serviço Nacional de Informações], com ajuda de Delfim Netto, que construiu uma operação pra evitar o prejuízo dos contraventores com a bancarrota da empresa, fazendo com que fosse vendida para o Grupo Brastel antes que falisse de vez.
Tudo isso é comprovado por documentos que estão à disposição no Arquivo Nacional.
Mas não se pode parar por aí. Há de se estudar como as lideranças do Jogo do Bicho vincularam a Falange Vermelha [hoje Comando Vermelho] com o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro - até o fim dos anos 1970, a organização era comandada principalmente por assaltantes de bancos.
Toninho Turco, sob ordens do Clube Barão de Drummond, formou uma quadrilha com mais de 60 policiais e ex-policiais e permitiu que toda uma nova geração de bandidos do CV [Rogério Lengruber, Escadinha, Bagulhão] substituísse os fundadores [William da Silva Lima, conhecido como ''Professor'', e outros].
A estratégia adotada imitava o domínio territorial que os bicheiros tinham em bairros do Rio. Os membros do CV controlariam as favelas, conquistando inicialmente o apoio das populações locais, e seriam abastecidos com armas e drogas.
O Jogo do Bicho fazia o tráfico do atacado para a cidade, e o CV vendia no varejo dentro das favelas.
[Aliás, o Capitão Guimarães foi pioneiro nesse tipo de esquema com o tráfico no Morro dos Macacos, ainda no fim dos anos 1970, quando a Falange Vermelha ainda estava mais preocupada com assaltos].
O crime organizado cresceu durante o regime civil-militar e com colaboração do aparato de repressão. Ali estão as raízes da calamidade atual das fronteiras e das grandes cidades brasileiras. A estrutura inteira foi montada com amplo e decisivo auxílio de membros importantes das Forças Armadas e das polícias.
Não demorou muito, porém, para que a direita colocasse nos governos de esquerda, e mais especificamente em Leonel Brizola, o descalabro que se tornou a segurança pública do Rio de Janeiro, até então a ''vitrine do Brasil".
Diferente da propaganda direitista, os governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro foram os que melhor debateram a segurança pública e em que mais foram tomadas iniciativas com amplitude e capacidade para transformar positivamente a área.
Os inimigos do líder trabalhista se aproveitaram do crescimento exponencial dos índices de criminalidade fluminense nos anos 1980 e 1990 para colarem em Brizola a imagem de leniência e omissão com o crime. Mas nas duas vezes que sucederam o PDT, incentivando uma política de confronto e guerra que passava por cima dos direitos mais básicos, fracassaram de modo retumbante e inapelável.
Havia pouca produção acadêmica sobre o problema da criminalidade urbana e os aparatos policiais brasileiros quando Brizola se tornou Governador do Rio pela primeira vez. Era uma época em que boa parte dos intelectuais se apegava à criminologia crítica e se voltava para o garantismo constitucional. As novas orientações trabalhistas causaram uma mudança sem precedentes na forma de lidar com o tema na prática da governança, impulsionando a reflexão sobre a questão.
O coronel Cerqueira, elevado a Secretário de Segurança, defendia que a polícia devia abandonar sua cultura política anterior e se ver principalmente como um ''serviço público armado'', voltado para o reconhecimento e a ampliação da cidadania.
Diferente da propaganda direitista, os governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro foram os que melhor debateram a segurança pública e em que mais foram tomadas iniciativas com amplitude e capacidade para transformar positivamente a área.
O escopo era o de estabelecer uma política comunitária: o programa dos ''Vigilantes Comunitários'', o Grupamento de Aplicação Prática Escolar, o Centro Integrado de Policiamento Comunitário, o projeto de ''Policiamento do Bairro'', o Batalhão Escola de Polícia Comunitária etc.
Existiam limites teóricos em parte dos que apoiavam as novas tendências. Afinal, o crime não é simplesmente um ''grito dos excluídos'', e sim fenômeno que tem autonomia em relação à desigualdade social, e que afeta de maneira mais direta os pobres, suas principais vítimas. Mas fica difícil pensar qualquer política de segurança pública hoje em dia que não parta dos eixos norteadores estabelecidos pelo PDT de então [de Brizola].
Brizola não obteve êxito nesse terreno por diversas razões. A resistência institucional da própria Polícia foi uma delas, assim como os costumes e expectativas enraizadas em boa parte da população sobre o que devia ser a ação policial. A criminalidade também estava mudando: o país se tornava rota internacional do comércio de drogas -- a venda de tóxicos no ''atacado'', cujo mercado era a Europa --, as favelas cresciam descontroladamente em meio a uma crise econômica atroz e a um dos maiores êxodos rurais da Historia. O Rio de Janeiro, por sua vez, sempre na vanguarda das metrópoles brasileiras, já adentrava uma era pós-industrial com consequências sociais desastrosas e insanáveis no modelo de país que passaria a vigorar na Nova República.
O problema, que já não era nada simples, deixava de ser passível de enfrentamento apenas no âmbito estadual.
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