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Sobre Onças e Astros, ou: um minúsculo estudo sobre alguns erros de outro estudo



Tomei conhecimento de um texto publicado no site de uma organização duginista, e que, a pretexto de realizar um “estudo comparativo entre a mitologia tupi-guarani e a viking”, faz um ataque a símbolos da Frente Sol da Pátria.


O tal estudo parece ser nada além de um eufemismo baseado em sites de divulgação da Internet, dados os simplismos e erros que comete sobre os mitos tupis. Toda a peça está voltada para demonstrar que o mito da Onça Celeste que persegue a Lua e seu meio-irmão [que a autora do texto alega ser o Sol, o que é possível mas não seguro] é um ser malévolo, responsável pelo fim do mundo, e comparável, por um lado, ao Ragnarok dos nórdicos, e, por outro, ao Anticristo [????].


Os símbolos da Frente Sol da Pátria não se fundamentam diretamente nos mitos tupinambás. Mas não custa nada comentar, até com o fim de ajudar a autora em suas futuras pesquisas sobre o tema. Ora, para os tupis, o mundo já acabou outras vezes. [1] A primeira destruição foi causada pelo próprio Nhanderuvuçu, que o texto apresenta erroneamente como “o princípio, primeiro antes de tudo” [não é, mas não aprofundarei este ponto no presente texto].


Foi Monan que, para se vingar do desprezo que os homens passaram a lhe dirigir, decidiu destruir a terra por meio de um incêndio fatal. Ou seja, o texto já tem um problemão para resolver logo de início: a suposta maldade da Onça Celeste ao engolir a Lua [e seu meio-irmão] não é nada perto da fúria avassaladora que a vingança d’O Velho dirige contra a Terra e que dá cabo da “primeira humanidade”, exceção feita a Irin-Magé [a segunda humanidade será também destruída, dessa vez por um dilúvio, ainda antes de Jaci subir aos céus].


Por outro lado, na maioria das fontes à disposição, Jaci e seu meio-irmão não são filhos de Tupã, que a autora associa ao deus Thor. O primeiro é filho do xamã Andejo, e o segundo, de um personagem que violentou a mãe de Jaci enquanto ela procurava em vão por seu “marido” [que a deixou para trás, grávida, por sentir necessidade de realizar uma grande viagem]. A mulher estava, ao mesmo tempo, grávida de dois homens diferentes, algo comum na mentalidade tupi.


Não quero me estender, mas a mãe de Jaci foi devorada por uma tribo de homens que se metamorfoseavam em onças [um poder atribuído aos xamãs, e que tem ligações com a arte da guerra] e provavelmente tinham o Xamã Sumé como ancestral. Mais tarde, Jaci se vinga da tribo, afogando-a em um rio. Ele e seu meio-irmão encontram o pai, Andejo, e, após passarem por provas iniciáticas e provarem que são grandes xamãs, ascenderam aos céus.


Pois bem, é provável que a tentativa da Onça Celeste de devorar Jaci seja uma vingança pelo ocorrido com a tribo de homens-onça. A Onça Celeste, que obviamente não é um ser ctônico como dito no texto [ela é CELESTE!], é ao mesmo tempo associada a uma estrela e a uma constelação, as Plêiades, ou mais precisamente ao Sete-Estrelo [ou Seixo, ligado ao crescimento da mandioca, planta por sua vez associada a Sumé]. O Xamã Sumé, que os jesuítas pensavam ser o Glorioso Apóstolo São Tomé, é inimigo do Xamã Maíra, de quem os tamoios alegavam descender. De modo que tudo não passa também de guerra entre parentes, um princípio que de certa maneira organizava a vida tupi.


Jaci nitidamente se tornou a Lua quando ascendeu aos céus. Já seu meio-irmão pode muito bem não ser o Sol. Segundo o Conde D’Albeville, frade capuchinho francês que foi um dos coletores dos mitos tupinambás, trata-se da estrela vespertina, ou seja, Vênus: “Dão à estrela vespertina o nome de Pirapanema e dizem que é quem guia a Lua e lhe vai à frente”. Aliás, na narrativa, é Jaci, a Lua, que se regenera sozinha e ressuscita seu meio-irmão, o oposto do que afirma a autora do texto: os tamoios consideravam Jaci, a Lua, como ancestral mítico direto [o chamavam de “avô”]. Jaci chega a ser descrito também como uma “entidade principal”, não por ser a primeira, mas por ter precedência sobre as demais.


Seja ou não este um mito solar/lunar [não temos como saber com segurança], o Sol está ligado bem mais seguramente a outros personagens: Coaraci [Poxi] e Guapiraca, xamãs que têm outro ciclo de histórias ligado à segunda humanidade, e não à terceira [como é o caso de Jaci e Pirapanema]. Por fim, Albeville tampouco referenda a tese do texto duginista de que os “os índios de várias partes do Brasil fazem um ritual muito barulhento, a fim de espantar a Onça Celeste para que ela não engula o Sol e a Lua”. O frade diz o contrário. Segundo ele, só as mulheres choram quando a Onça Celeste se aproxima de Jaci:


“Todos os homens pegam então seus bordões e voltam-se para a Lua batendo no chão com todas as forças e gritando: ‘Eicobé xeramó. Güé, güé, güé; eicobé xeramói, güé!’. O que significa: ‘Au au au! Boa saúde, meu avô!’. Entrementes as mulheres e as crianças gritam e gemem, e rolam por terra batendo com as mãos e a cabeça no chão. Desejando conhecer o motivo dessa loucura e diabólica superstição, vim a saber que pensam morrer quando vêem a Lua assim sanguinolenta, após as chuvas. Os homens batem então no chão em sinal de alegria porque vão morrer e encontrar o avô, a quem desejam boa saúde. As mulheres, porém, têm medo da morte e por isso gritam, choram e se lamentam.”


É que, para os tupinambás do século XVI, a Terra sem Males – aquela em que Monan colocou Irin-Magé depois de destruir a Terra pelo fogo – não podia mais ser alcançada em vida [isto tem a ver com o mito do segundo dilúvio, que não vou tratar aqui]. A única forma de alcançá-la era através do ciclo de vingança, aquela mesma paixão que levou o Velho a incendiar o mundo em primeiro lugar. Só matando muitos inimigos, e assim acumulando muitos “nomes”, a alma do guerreiro estaria preparada para a batalha pós-morte, que poderia conduzi-la à Terra sem Males [ou então, sendo morto em um ritual antropofágico de vingança]. Assim, para eles, o fim do mundo não era necessariamente ruim. Só era ruim para quem não era ainda um grande guerreiro.


Voltando ao que é importante, os guerreiros reputados, os antropófagos, eram também ONÇAS. Para alcançar a Terra sem Males era necessário ser onça também, pois ela devora, não é devorada. Como Cunhambebe explicou ao alemão Staden, que estava estupefato ao vê-lo comer carne humana: “eu sou uma onça!”. Por isso também os xamãs, ou caraíbas, não podiam ser mortos no ritual antropofágico, já que se transformavam em onças. Não existia nada de propriamente “maligno” na onça, segundo as crenças tupinambás. Ela era até o ideal a ser seguido. Era melhor evitar o fim do mundo, mas só pra dar tempo de se tornar onça, matador e devorador de inimigos.


Obviamente, nada disso tem a ver com o cristianismo, o que torna a conclusão do texto puro nonsense. Se comparar Tupã a Thor, e Monan a Odin, já é, digamos, complicado, imagine pensar que a via tupinambá para a Terra sem Males é similar a de um cristão, que por princípio tem de renunciar à vingança e “perdoar setenta vezes sete”. Enfim, o texto é um amontoado de equívocos com o único propósito de dizer “ei, não gostamos de vocês!”.


Mas já que a brincadeira é essa, aqui vai uma batata quente: o caminho para a Terra sem Males implicava atravessar o Oceano [como fez Sumé] rumo ao Oeste [para além das Altas Montanhas]. Bem diferente do que diz Dugin, afinal. Ou seja, se os cristãos não têm a ver com essas comparações descabidas, imagina unir os supostamente nordicistas duginianos, que consideram em sua geografia sagrada o Ocidente um inframundo, com tribos que estavam doidas para rumar pro Oeste e pros sertões, e atravessar o Oceano.


Comparações estruturais entre mitologias são assunto complexo. Ainda mais quando se trata de uma como a tupinambá, sobre a qual há muitas lacunas. [Muito do que se sabe sobre ela são reinterpretações e estereótipos cristãos, ou reatualizações que os próprios indígenas faziam já sob contato e presença dos europeus e depois dos brasileiros.] Mas uma regra é clara: não vale forçar a barra e fingir saber aquilo que não sabe.


Adendo: sobre quem devora e sobre quem é devorado


O festival de impropriedades do texto publicado em certo site duginista, que se pretende um estudo comparativo entre as mitologias tupi e viking, em uma tentativa de supostamente "ler os logoi brasileiros", é, enfim, um estudo ligado à Noomaquia duginiana.


A autora do texto se preocupa com a perseguição que a Onça Celeste faz a Jaci e Pirapanema, seu meio-irmäo. Segundo ela, isso ameaça toda a "ordem solar". Mas ela não devia se preocupar tanto assim, pois os tupinambás não liam Evola, e por isso os elementos de seus mitos não têm o mesmo significado simbólico dos livros do Barão italiano. Os tamoios não estavam lá muito preocupados com essa tal "ordem solar" evoliana.


Ora, o Sol só brilha depois que Coaraci e Guapiraca, dois poderosos caraíbas, ascendem aos Céus. Até então, os filhos de Irin-Magé não tinham Sol no Céu. Nem Lua. E os grandes caraíbas, como Maíra e Sumé, andavam pelo mundo, conhecedores dos caminhos para o Céu e para a Terra sem Males, que era sem Mal mesmo sem Sol e Lua.


Antes de Monan colocar fogo na Terra para se vingar, ele convivia harmonicamente com os primeiros homens. O Velho andava entre os homens em uma realidade sem morte, sem doença, sem trabalho, e passada em meio a festas. Não havia Sol e Lua também.


Não se deve ler mitologias de forma esquemática e simplória, sem levar em conta o plano em que se dá a narrativa e a relação entre seus componentes. Isso é o básico do básico, e movimentos tradicionalistas deveriam sabê-lo.


Só mais dois adendos.


O trovão e o relâmpago não são atributos originais de Tupã. Nem essencialmente nem enquanto operação e atividade. Ele só os recebe de modo passivo, por consequência da explosão da cabeça do caraíba Maíra quando este foi cercado pelos homens, que criaram um estratagema visando a matá-lo por não aguentarem mais serem punidos com metamorfoses. Sabe-se pouco sobre Tupã, mas ele está mais ligado ao "orvalho do céu", ou seja, às nuvens [mas não necessariamente ao cultivo de plantas, que se deve principalmente a Maíra e a Sumé]. Nem o Sol nem Tupã eram objeto de qualquer culto especial entre os tupinambás.


Nhandevuruçu não é "o primeiro antes de tudo". Segundo poemas/mitos guaranis, antes de tudo existia uma escuridão, que não era aquática e sim sólida, na qual viviam morcegos [tribos tupis falavam de corujas eternas]. O Velho [significado de Monan] aparece quando os morcegos decidem bater as asas. Ou no momento em que eles batem. Não há como saber ao certo se o Velho é autogerado ou causado. Mas ele é o primeiro ser com forma humana. E cria o Céu, que é feito de pedra, e sobre o qual ele caminha com um cajado [ele é também a primeira constelação]. O perspectivismo tupinambá é marcante aqui: o céu está sob os pés d'O Velho, que quando olha para cima vê a Terra, assim como quem está hoje na Terra tem de olhar para o alto a fim de contemplar o Céu.


Por fim, existem forças subterrâneas temíveis na mitologia tupi. O Anhangá vive submerso nas águas formadas pelo segundo dilúvio [causado pela briga entre os irmãos Tamanduaré e Guacuiré, outra rivalidade entre gêmeos, o primeiro representando o protótipo do agricultor, e o segundo do guerreiro]. São águas subterrâneas. Não se sabe bem o que é o Anhangá, existem algumas interpretações a respeito, mas ele[s] arrasta[m] as almas dos mortos para o fundo das águas, onde são escravizadas. Anhangá promove guerra contra os homens que lutam para, como onças, alcançarem a Terra sem Males.


Por fim, ser onça e descobrir o caminho conhecido pelos grandes caraíbas envolve imitar uma mulher. Foi uma anciã o primeiro ser humano a se transformar em onça para vingar seu filho, assassinado e devorado pelo cunhado. [O cunhadismo tupi não era uma coisa colorida: toda vítima do ritual antropofágico se tornava cunhado na aldeia que o devoraria. O ciclo de vingança e canibalismo pode ter tido início como punição a um incesto ou estupro, mas isso está longe de ser seguro.] [2]


O meio-irmão de Jaci [Vésper?], no ciclo mítico dos gêmeos que procuram Andejo, também é fruto de um estupro, aliás.


Bem mais proveitoso é comparar o substrato dos mitos tupinambás com certas concepções da Índia, outro povo da Rainha do Meio Dia. Como repete Ananda K. Coomaraswamy, o universo é alimento dos deuses.


Mas aí seria entregar muito mais do que o texto duginista merece.


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[1] Digo "fim do mundo", mas tratou-se sempre de fim dos homens. Por isso, também, a perseguição da onça [uma estrela e constelação] à Lua e seu meio-irmão tampouco é um "mito escatológico" comparável ao Ragnarok ou ao Apocalipse cristão


[2] A novela Pantanal traz ecos folclóricos de toda essa mitologia na história de Maria e Juma Marruá e o ciclo de vinganças por conflitos de terras no Paraná.

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