“Virgulino, hoje tenta gente Lembra seu destino Desde a Ingazeiro donde foi menino Valente vaqueiro Cabra sanfoneiro, bandoleiro”
No dia 04 de Junho de 1898 – ou 1900, não se sabe ao certo – nascia, em Serra Talhada, Pernambuco, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Terceiro dentre os nove filhos de José Ferreira da Silva e Maria Lopes, Virgulino começou a trabalhar cedo, logo aos doze anos de idade, quando seguiu seu pai e seus irmãos mais velhos na criação de gado, na lavoura e de almocreve.
A Serra Talhada dos tempos de Virgulino era eivada de conflitos que opunham parentelas na busca e manutenção do poder local. Em 1916, o antagonismo entre os Pereiras e Carvalhos – famílias rivais da época – recrudesceu, deixando José Ferreira da Silva, aliado dos Pereiras, de sobreaviso em relação aos vizinhos aliados dos Carvalhos. No mesmo ano, o patriarca dos Pereiras, Padre Pereira, foi morto por um integrante da família rival, fazendo com que Sinhô Pereira jurasse vingança e saísse no encalço dos algozes de seu pai.
Naquele mesmo tempo, seguidas intensas rusgas, José Saturnino – aliado dos Carvalhos – e José Ferreira da Silva entraram em confronto aberto, tendo relatos de tiroteios e feridos de ambas as partes das famílias. Em 1917, percebendo o agravamento da querela, e não querendo pôr a vida da família em risco, José ferreira da Silva decidiu seguir para a cidade de Mata Grande, interior das Alagoas. Mas de nada adiantou, pois os governantes daquela cidade também tinham malquerença com os Pereiras e, sendo José Ferreira um Pereira por afiliação, foi assassinado dentro de casa enquanto seus filhos trabalhavam. Com o assassinato do pai, Virgulino e seus irmãos passam a integrar o bando de Sinhô Pereira e partiram em busca de vingança contra os assassinos de seu genitor. Neste momento, nascia Lampião.
A alcunha de Lampião foi dada a Virgulino muito cedo, pois, de tão habilidoso que se mostrava nos tiroteios, “sua espingarda nunca deixava de ter clarão, tal qual um Lampião”. Em 1922, por conselho de Padre Cícero, Sinhô Pereira decidiu abandonar o cangaço, pois, de todos os que considerava responsáveis pela morte de seu pai, só restava um, e Lampião daria cabo deste último honrando sua palavra com o seu iniciador na vida do cangaço. Com a retirada de Sinhô Pereira, Lampião assumiu o bando e passou a escrever sua página na história do Brasil.
Um fato que mudaria a composição do cangaço, e também diminuiria a intensidade da violência das ações dos cangaceiros, ocorreu em 1928 ou 1929, não se sabe ao certo, quando, passando pelo norte da Bahia, uma tal Maria – que já era casada, mas nutria uma paixão platônica por Lampião – mandou avisar ao Rei do cangaço que estaria disposta a segui-lo em suas andanças. Lampião a principio não quis levá-la, porque, até então o cangaço não aceitava a presença de mulheres nos bandos, mas no final aceitou, pois, subjugado pela beleza e audácia da moça, também já tinha tido suas emoções tocadas por sua “santinha”. A história de amor de Lampião e Maria bonita já virou lenda popular, contudo, a realidade foi bem mais dura, uma vez que, dos vários filhos que o casal teve, apenas uma sobreviveu.
O fim de Lampião e, de certa forma, do cangaço, se deu em 1936, na Grota do Angico, Sergipe, local em que o cangaceiro e seu bando sempre escolhiam para o repouso e reorganização depois dos enfrentamentos com a polícia. Depois de muito escapar, os cangaceiros foram entregues por um olheiro de sua confiança que, sob a pressão da volante – liderada pelo tenente Bezerra – que perseguia Lampião, não só os entregou como também levou os soldados até o esconderijo do bando. Após intenso tiroteio, os cangaceiros sucumbiram e tiveram suas cabeças cortadas e expostas nas escadarias da prefeitura de Piranhas e depois em Maceió.
Depois da mórbida exibição pública no estado de Alagoas, as cabeças dos cangaceiros tiveram seu destino final em Salvador, Bahia, onde foram mumificadas e integraram o acervo do museu Nina Rodrigues. Assim, se encerrava de uma vez por todas a história do cangaço.
Os feitos de Lampião na liderança do cangaço são debatidos até hoje por historiadores e curiosos pelo tema. Alguns defendem que o cangaço não passou de banditismo vulgar, cruel e sanguinário, não merecendo nenhuma referência que não fosse a negação total da figura de Lampião. Por outro lado, temos os que defendem que Lampião e seu bando foram os heróis de seu tempo, funcionando como uma espécie de justiceiros do sertão – que roubavam dos ricos para dar aos pobres.
Lampião e seu bando praticaram, sim, atos cruéis e só consideravam seus amigos os que com eles estivessem e os acobertassem – sendo pobres, ricos, fazendeiros pequenos e médios, delegados ou políticos. Os cangaceiros foram, sim, foras da lei se fossemos julgá-los pelas lentes do mundo de hoje, e tendo o ordenamento jurídico que temos hoje – que, mesmo distante do ideal, com certeza é melhor do que tinha o Nordeste da época de Lampião.
No entanto, é preciso levar em consideração que o Sertão da época de Lampião era celeiro das maiores iniquidades de que se pode ter notícia, sendo cada região dominada e subjugada por coronéis que tratavam os moradores das cidades como seus servos. Se a história de Lampião ganhou contornos de resistência dos pobres frente à opressão dos ricos, isso se deveu à audácia desses homens e mulheres que compunham o cangaço terem se rebelado pelas armas e tomado – pelo terror, muitas vezes – as rédeas de seu destino.
Em suma, o mito de Lampião não sobrevive apenas pela violência em que empregava enquanto viveu. É possível verificar resquícios do Rei do Sertão também na cultura brasileira em forma de músicas, filmes, literatura de cordel e, de certa forma, nas lembranças dos valores tradicionais que funcionaram como muros de contenção face à globalização desenfreada que muitos nordestinos tiveram de enfrentar quando migraram para o Sul. Na busca por condições melhores de vida, esses sertanejos encontraram na figura de Lampião um símbolo aglutinador que serviu de defesa contra o desenraizamento e alienação total de sua terra e sua história.
«Lampião respeitava e tinha devoção por quase todos os santos, com exceção de São Benedito, que nas palavras de Lampião : "Não poderia ser considerado santo, pois era um negro, onde já se viu nestes sertões, um negro ser santo"»
(Lampião na Bahia, Coelho Fontes, p. 284).