Depois de combater o terrorismo e grupos rebeldes por mais de doze anos, o ex-Presidente sírio Bashar al-Assad fugiu da capital Damasco com sua família em 7 de dezembro, pouco antes de Damasco cair tomada pelos ebeldes. Os insurgentes vitoriosos, muitos deles estrangeiros, são (entre outros): a organização Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e uma coalização chamada "Exército Nacional Sírio".
Craig Murray (ex-Embaixador britânico no Uzbequistão), em um painel (vide vídeo abaixo) sobre "o fim do pluralismo no Oriente Médio", descreveu os "rebeldes sírios" como sendo "um instrumento da OTAN, Israel e Turquia". Esta é uma descrição complexa para uma situação bem complexa, de fato. Dos três itens mencionados, muitos analistas têm focado no elemento israelense e turco — mas não tanto no papel americano, contudo.
Recapitulando, desde a rebelião armada de 2011, a Síria vinha contando com ajuda militar de seus aliados Irã e Rússia. Pode ser politicamente incorreto afirmar isso, mas o fato é que a Guarda Revolucionária Iraniana e o Hezbollah libanês (apoiado por Teerã) têm sido de fato os principais atores antiterroristas na região do Levante, dissuadindo a expansão do grupo terrorista ISIS (Daesh) e, assim, fazendo da área um lugar mais seguro para os cristãos e outras minorias. Extremistas islâmicos wahabitas/salafistas estavam, afinal, decapitando alguns desses enquanto raptavam outros e vendiam mulheres capturadas como escravas (incluindo até mesmo “um convento inteiro de freiras ortodoxas sírias”), como relata Nina Shea, pesquisadora sênior e diretora do Centro para Liberdade Religiosa do Instituto Hudson. Já em 2012, o jornalista Ariel Zirulnick, escrevendo para o Christian Science Monitor, relatava que os cristãos do Levante, ameaçados pelo ISIS e grupos rebeldes similares, encontravam refúgio seguro em um reduto do Hezbollah, onde “imagens do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, dividem a lareira e o espaço na parede com a Virgem Maria” (Nasrallah foi recentemente assassinado pelas forças israelenses).
O fato é que os rebeldes que triunfaram na Síria agora não são de uma linha muito diferente, e não é de se admirar que muitos estejam preocupados com a situação agora. O arcebispo Ieronymos de Atenas, por exemplo, pediu ao Ministério das Relações Exteriores grego que ajudasse a população cristã na Síria. Sua Excelência Reverendíssima escreveu:
"O avanço de grupos armados extremistas e a captura de Aleppo ameaçam... a composição inter-religiosa da população da região... agora há um perigo iminente de erradicação completa... da ortodoxia grega e do cristianismo da região mais ampla."
Essa preocupações são bem fundamentadas. Vide, por exemplo o HTS, o grupo supracitado apoiado pela Turquia que capturou Aleppo, a segunda maior cidade da Síria: o senhor Abu Mohammed al-Julani, o próprio líder do HTS, é alguém que entrou para a rede terrorista Al-Qaeda no Iraque, em 2003, tendo fundado depois um ramo dissidente na Síria, a chamada Frente al-Nusra. Este grupo, sob o comando de al-Julani, cooperou com o famigerado Abu Bakr al-Baghdadi, o autoproclamado "califa" líder do ramo dissidente da Al-Qaeda chamado "Estado Islâmico no Iraque", mais tarde conhecido como ISIL (ISIS) ou Daesh - já citado.
A própria ruptura posterior de Al-Julani com a Al-Qaeda e a criação do HTS acima mencionado é descrita por alguns analistas como uma mera estratégia para "enfatizar mais os objetivos nacionais, em oposição aos transnacionais, de seu grupo". Em outras palavras, o grupo é apenas mais um "re-brand" ou uma recauchutagem ou reelaboração da marca do ISIS/Al-Qaeda. É esse tipo de gente que agora tomou o poder a Síria.
É possível ser contra Assad, obviamente, mas o desdobramento que vemos agora na Síria dificilmente pode ser descrito pela maioria das pessoas como outra coisa senão um desastre. A Turquia (que auxilia os rebeldes) e Israel, como já mencionado, se beneficiam desse desenrolar, no entanto, por suas próprias razões — e muito já está sendo falado sobre isso. Mas não são muitos os analistas que estão destacando o papel dos Estados Unidos da América em toda essa situação.
Por exemplo, o chamado Exército Livre Sírio apoiado pelos EUA (uma coalizão que assumiu o controle do distrito de Palmira em Hom) anunciou que está "aberto à amizade com todos na região — incluindo Israel. Não temos inimigos além do regime de Assad, Hezbollah e Irã. O que Israel fez contra o Hezbollah no Líbano nos ajudou muito”–enquanto alegam que não são aliados da Turquia. O grupo, embora cada vez mais dependente da Turquia, é um aliado próximo dos Estados Unidos e até ficou sediado na base militar americana em al-Tanf. A Turquia, apesar de suas divergências com Washington, evidentemente é também, não nos esqueçamos, um Estado membro da OTAN (a aliança militar ocidental).
O futuro da Síria e das partes envolvidas está longe de ser claro agora, havendo muito espaço para lutas internas entre as diferentes facções rebeldes. A Turquia, que, há muito tempo, ocupa o norte da Síria, aproveitou-se do cessar-fogo no Líbano para dar aos rebeldes o sinal verde para lançarem uma ofensiva (com o Irã enfraquecido na Síria e o Hezbollah encurralado no Líbano). No entanto, as divergências turco-americanas relativas à questão curda devem permanecer sendo uma fonte de tensões.
O HTS é de fato apoiado pela Turquia, mas, como mencionado, suas raízes remontam até a Al-Qaeda, ISIS e outros grupos que foram fortalecidos pela política de Washington. É importante lembrar que ainda há cerca de 900 tropas dos EUA na Síria (a maioria no nordeste do país, perto de redutos turcos), tropas estas que testemunharam a vitória rebelde. Isso levou alguns analistas a comentarem que “quer o Pentágono queira admitir ou não”, tais tropas estão “provavelmente envolvidas no conflito mais amplo que se desenrola lá agora”.
Além disso, não há nada de novo no Ocidente elogiar e alimentar o terrorismo brutal e grupos radicais quando isso é considerado geopoliticamente conveniente: se a ex-secretária de Estado dos EUA (equivalente a Chanceler ou Minsitra das Relações Exteriores), Hillary Clinton, no governo do presidente Barack Obama, tivesse alcançado seus objetivos declarados, a Síria estaria em uma situação semelhante à da Líbia desde 2011 - na Líbia, coincidência ou não, armas fornecidas pelos EUA aos rebeldes de lá também "foram parar" nas mãos do ISIS, de acordo com relatórios da Anistia Internacional.
Goste-se ou não de Kadafi e seu regime, a Líbia por anos se orgulhava de ter o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente africano, antes da guerra civil, bem como ostentava uma significativa igualdade de gênero (um assunto em relação qual os ocidentais geralmente se sensibilizam, supostamente). Em contraste, na caótica Líbia pós-intervenção da OTAN, a escravidão está literalmente de volta, com africanos negros sendo vendidos como escravos em mercados abertos até hoje. Hillary Clinton notoriamente comemorou durante uma entrevista e riu depois de ver, em seu aparelho Blackberry, informes sobre a captura pública do falecido líder líbio e seu abuso brutal e assassinato por "rebeldes" fundamentalistas apoiados pelos EUA. Podemos imaginar que Assad teve sorte de ter evitado um destino parecido para si mesmo e sua família - enquanto outros não terão tanta sorte.
De volta à região do Levante, é um fato bem estabelecido que Washington desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do ISIS (ou Daesh) tanto na Síria quanto no Iraque (assim como outros radicais brutais), com o Pentágono e a CIA armando principalmente milícias islâmicas estrangeiras que acabaram depois até lutando entre si. Isso está em conformidade com a política externa americana em outros lugares também, como temos visto. Os famigerados e-mails de Hillary Clinton (que vazaram) também mostram como os EUA estavam cientes do fato de que seus aliados Qatar e Arábia Saudita estavam dando apoio ao terrorismo do Daesh.
Sean Savett, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca (em inglês, NSC), disse em uma declaração recente que Washington "não tem nada a ver com essa ofensiva" (na Sìria). Considerando tudo o que foi mencionado acima, tal declaração certamente pode ser encarada com desconfiança. Para Washington, desestabilizar ainda mais a Síria também pode servir ao papel de "contrabalançar" a Rússia na região. Os EUA têm consistentemente auxiliado, financiado, armado e treinado rebeldes fundamentalistas que operam no Levante por mais de uma década e não há razão nenhma para supor que agora seja diferente em se tratando dos últimos desdobramentos que levaram à queda de Assad.
Finalmente, ainda no que diz respeito à minoria cristã, a política externa dos EUA — por uma variedade de razões — tem, na verdade, envolvido frequentemente dividir ou desestabilizar as populações cristãs orientais (ortodoxas e miafisistas) ou, às vezes, até mesmo auxiliar ou fazer vista grossa à limpeza étnico-religiosa de tais grupos ou de cristãos em geral na região do Levante. Isso é, evidentemente, bastante irônico em se tratando de um país como os EUA, que frequentemente se autointitula como “uma nação sob Deus” ou como uma “nação cristã” – essa é pelo menos a linha do Partido Republicano. Em todo caso, o recém-eleito Presidente Republicano Donald Trump, por exemplo (que tomará posse em janeiro de 2025), postou que “a Síria está um caos, mas não é uma nação amiga nossa!”.
Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos.
O autor escreveu, originalmente em inglês, uma versão menor deste artigo - "Syria falls to rebels who are “a tool of NATO, Israel and Turkey” with US role included". Aqui traduzido e adaptado, pelo próprio autor.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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