Morreu Maria. Morreu João. E morreu o Dalton, quase centenário. Dalton, o atleticano. Dalton, o Vampiro. A casa dele ficava ali: esquina da Ubaldino do Amaral com Amintas de Barros. Certa vez, levei amigos para visitar o casarão. Umas árvores secas no jardim e nada do autor. Talvez o Dalton estivesse lá dentro escrevendo alguma coisa. Pensando na Curitiba de outro dia.
Quando eu comecei a me engajar na “vida literária” da capital do Paraná, minha terra natal, Dalton Trevisan era sempre o grande nome das rodinhas e cafés da Reitoria. “O Dalton”. Obviamente, era um crime contra a honra falar mal dele, mas eu também tinha a impressão de que ninguém tinha lido muito mais do que três continhos das coletâneas que sempre estavam em destaque na livraria do Chain. Todos sabiam as mesmas histórias, contavam os mesmos feitos e repetiam as mesmas frases na tentativa de me explicar a “genialidade do Dalton”. Por causa disso, e de uma fortíssima síndrome de oposição que nunca me abandonou, peguei raiva do autor e achava até meio farsesca sua reclusão e todo o culto ao redor de sua figura. Aquela comoção me soava como um provincianismo absurdo, que era incompatível com as ideias que eu sustentava sobre a cultura superior e universalidade da arte.
Anos depois, a distância que tomei de Curitiba- muito mais física do que ontológica- me ajudou a reavaliar a obra de Dalton Trevisan. Comecei com um “Novelas Nada Exemplares” aqui, um “Mistérios de Curitiba” ali, um “Lincha Tarado” acolá, e umas cartas - destinadas ao Pedro Nava, ao Rubem Braga e ao Otto Lara Resende - apinhadas de polêmicas engraçadíssimas. Criticando Guimarães Rosa, por exemplo, ele diz que toda aquela “pirotecnia verbal” de Grande Sertão: Veredas é, na verdade, “a história menos plausível na literatura de travesti". Estava errado, é claro. Mas tinha o estilo e a graça do ofício até para se enganar. Nessas leituras todas, percebi o óbvio: o homem sabia o que estava fazendo. Era do ramo. Não só tinha um domínio incomum da língua, como também havia desenvolvido uma forma muito singular de contar a vida em Curitiba, suas taras, obsessões, repressões sexuais e áreas cinzentas. Com alguma vergonha, acabei entendendo que o provinciano em questão não era o Dalton. Era eu.
Depois de uma obra enorme, prêmios, reconhecimentos e mistérios, o Dalton está descansando. Morreu João. Morreu Maria. E morreu o Dalton, um curitibano universal.
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