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Laurence Sterne: o arauto do caos

Em 1759, um clérigo irlandês chamado Laurence Sterne lançava o primeiro volume daquele que seria considerado por muitos intelectuais e artistas como um dos mais brilhantes e inovadores romances já publicados: “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”. Admirado por Nietzsche — que não era lá um sujeito de elogiar muita gente — e Stendhal, Laurence Sterne é conhecido no Brasil por ter sido mencionado no célebre prólogo da quarta edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Segundo Machado de Assis, Sterne influenciou o seu Brás Cubas no uso da forma livre e na temática das viagens. Certamente, Machado se referia ao livro “Uma viagem sentimental” em que o autor irlandês narra viagens — reais e imaginárias — pela França e pela Itália. Livro divertidíssimo e desafiador, “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” foi traduzido no Brasil por José Paulo Paes e lançado pela Companhia das Letras.



Mas, afinal, qual é a grande inovação de Laurence Sterne e do que se trata esse romance praticamente desconhecido no Brasil? O enredo elementar do livro é bastante simples: um homem chamado Tristram Shandy narra suas memórias e a origem dos modos e dos haveres, intelectuais e materiais, que adquiriu ao longo da vida. No entanto, essa intenção narrativa é desmontada logo nas primeiras páginas do “Shandy”: o narrador inicia sua prosa com uma série de peripécias que vão desmontando a estrutura linear do romance, a organização lógica das memórias e a própria tessitura do sujeito que as enuncia. Não por menos, Laurence Sterne parece ter influenciado, direta ou indiretamente, os experimentos de Joyce e Beckett– autores que, coincidentemente, também são irlandeses.


As artimanhas de Sterne, entretanto, não se restringem apenas aos usos da estrutura do romance. Durante o livro, deparamos como páginas em branco, trechos aleatórios, parágrafos riscados… segundo o próprio Laurence Sterne, um dos capítulos foi suprimido por ser bom demais, o que acabaria prejudicando o equilíbrio geral da obra.


No cerne do “Tristam Shandy”, parece habitar aquela centelha que levou Rabelais a parodiar todos os elementos respeitáveis da alta cultura de seu tempo. O próprio título da obra, “A Vida e as Opiniões”, é, na verdade, uma troça com uma certa categoria de livros mui grandiloquentes que eram publicados à época com intuito de disseminar determinadas filosofias morais entre a população letrada. O sucesso absoluto do livro de Sterne pode ser explicado pela nossa necessidade inerente de ver o mundo às avessas, de liberar, para usar uma expressão do professor Luiz Costa Lima, o imaginário de suas amarras morais e temporais. Deixemos que o próprio autor explique seus ensejos:


“(…) portanto, meu caro amigo e companheiro, se me julgardes algo parcimonioso na narrativa dos meus primórdios, tende paciência comigo, e deixa-me prosseguir e contar a história à minha maneira: ou, se eu parecer aqui e ali vadiar pelo caminho, ou, por vezes, enfiar na cabeça um chapéu de doido com sinos e tudo, durante um ou dois momentos de nossa jornada, não fujais, mas cortesmente dai-me o crédito de um pouco mais de sabedoria do que a aparentada pelo meu aspecto exterior; e à medida que formos adiante, aos solavancos, ride comigo ou de mim, em suma, fazei o que quiserdes, mas não percais as estribeiras.

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