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Foto do escritorJayme Chaves

Morreu José Celso Martinez Corrêa

Por Jayme Chaves


Foi-se o último encenador brasileiro, de uma época em que o teatro, assim como o cinema tinha importância.


Quando Jean-Luc Godard morreu - aliás, durante a porradaria de Maio de 68 em Paris, José Celso foi atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo quando apreciava o espetáculo da janela do hotel, enquanto Godard estava na rua filmando tudo - eu observei que ele era de um tempo em que se trocava socos por causa de cinema, e não apenas por causa de política. O cinema, assim como o teatro, acabou, mas a política ainda está aí para destruir as nossas vidas.


Saudades do cinema. Saudades do teatro.



Conheci o trabalho de Zé Celso através do livro "Oficina: do teatro ao te-ato", de Armando Sérgio da Silva, fundamental para se conhecer não apenas a trajetória do grupo, mas também uma época ímpar na história das artes no Brasil. De fato, o período que vai do fim da Era Vargas até meados da década de 1980 (e para fazer valer a minha tese vou fingir que a estreia de "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, dirigido pelo polonês Ziembinski, não aconteceu em 1943) se notabilizou pela promessa de um teatro e de um cinema brasileiros graças à vinda de encenadores estrangeiros, como o próprio Zimba, além dos italianos e franceses, a formação das grandes companhias como Os Comediantes, o TBC, o Teatro Oficina, o Teatro de Arena, o Teatro dos Sete, a Companhia Celi-Autran-Carrero, companhias de repertório que não raro trabalhavam de terça a domingo, ensaiando pela manhã e cumprindo temporada à noite, muitas vezes fazendo quatro sessões nos fins de semana. Um sistema impensável nos dias de hoje. Mais tarde, a ditadura militar nos deu a melhor arte de "resistência", não essa resistência mequetrefe e safada, apadrinhada pela grande mídia durante o governo Bolsonaro, mas resistência de fato, onde o surto de criatividade implicava realmente risco de ser preso, surrado, torturado e exilado. Assim, para nós, da minha geração, que éramos muito pequenos para ter visto "O Rei da Vela", "Galileu Galilei" e "Na Selva das Cidades", ou mesmo aquela que é considerada a melhor produção realista stanislavskiana do teatro brasileiro, "Os Pequenos Burgueses", livros como o de Armando Sérgio, ou a compilação de manifestos e entrevistasdo Oficina editada pela revista "Dionysos", do Serviço Nacional de Teatro, eram importantes para, no mínimo, termos uma experiência de segunda mão, vicária, com esse momento da história. Éramos Emma Bovary fumando maconha na Rua Jaceguai.


Meu primeiro professor de teatro foi o irmão de Zé Celso, Luiz Antônio Martinez Corrêa. Seu trabalho era muito diferente, focado num estudo pragmático e histórico dos mais variados gêneros e subgêneros teatrais: construtivismo russo, grand-guignol, teatro nô, vaudeville, teatro épico, revista brasileira. Seu campo de ação eram as escolas e universidades, onde sua pesquisa virava matéria didática, e os resultados, espetáculos. Montou "O Percevejo" de Maiakovski, em 1981, marcando época. Morreu assassinado por um michê em seu apartamento em Ipanema.


Meu terceiro professor de teatro foi Ivan de Albuquerque, o diretor do Teatro Ipanema, que com o ator Rubens Corrêa também marcou época nos anos de 1970, com produções como "O Arquiteto e o Imperador da Assíria", "Hoje é dia de Rock" e "Artaud!". Ivan me dizia, lá pelo fim dos anos 80, que o problema de Zé Celso era que ele não se contentava em apenas montar uma peça. Ele queria sempre "virar a mesa do teatro brasileiro". Isso talvez explique, em parte, o ostracismo de Zé Celso durante vinte anos após a volta do exílio.

Quando ele finalmente conseguiu voltar à cena na década de 1990, com seu "Ham-let", lá no espaço mitológico e reformado do Teatro Oficina, deu-nos uma montagem de quase cinco horas de duração. O texto de Shakespeare estava na íntegra. Eram momentos de absoluta genialidade misturados a outros francamente enfadonhos e outros de pura provocação vazia e gratuita. E poderia ser diferente? Lembro de coisas bizarras como a irmã de Itamar Assumpção interpretando a atriz que interpreta a Rainha na peça dentro da peça, cantando o seu texto como se fosse um "blues", e o próprio Zé Celso no papel de Rei, respondendo em bossa-nova. Teve o assassinato de um repolho. Teve a impressionante Ofélia da atriz Leona Cavalli.


Teve muita coisa.


Infelizmente, ao contrário de um Antunes Filho, que após uma bem sucedida carreira profissional, reinventou-se com "Macunaíma" e o grupo que mais tarde iria se tornar o Centro de Pesquisa Teatral, Zé Celso havia se transformado em uma caricatura de si mesmo, um porra-louca desbundado que não chocava mais ninguém simplesmente porque não havia mais ninguém para chocar. Ninguém dava mais a mínima. O sistema, evidentemente, venceu. Absorveu as transgressões e embalou-as para consumo imediato, com validade de 24 horas. O pouco que eu vi da produção de Zé Celso pós-"Ham-let" pouco evocava o que a minha imaginação havia construído quando da leitura dos livros, ainda que uma famosa "Bacantes", famosa pelo incidente envolvendo o desnudamento de Caetano Veloso em cena, num festival no Rio de Janeiro, ainda tivesse momentos de interesse. Não vi "Os Sertões".


Com a sua morte, morre o teatro brasileiro. Não porque ele fosse o maior diretor de teatro, mas porque ele era o último. O último de uma geração para a qual o teatro era uma experiência crucial, um caso de vida ou morte.


O teatro hoje, além de não ter nenhuma importância, se tornou inviável. O que sobrou da antiga grandiosidade do teatro brasileiro se encontra, hoje, na ópera. Prova-o o fato de que hoje em dia só temos, basicamente, monólogos e stand-ups, baratos de se fazer, e musicais, caros mas rentáveis. E tudo, ou quase, de uma chatice, de uma paumolescência, de uma correção política exasperante.


Correção política que, ironicamente, a geração de Zé Celso contribuiu para instaurar. Nunca serão perdoados.


R.I.P.

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