Texto traduzido e adaptado de: https://infobrics.org/post/37714
As autoridades turcas em Ancara têm vetado a candidatura de Estocolmo para ingressar na OTAN, supostamente devido às políticas daquele país nórdico em relação a grupos de exilados curdos. Em 23 de janeiro, o próprio presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, disse que a Suécia não deveria esperar nenhuma "boa vontade" de seu país porque Estocolmo, segundo ele, deixa "organizações terroristas fazerem o que quiserem". É um fato bem conhecido que muitos políticos suecos participam de eventos organizados por simpatizantes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) - na Suécia existe uma diáspora curda relativamente grande. A Turquia certamente demonstrou falta de “boa vontade” em relação à adesão da Suécia à OTAN e, embora as razões para isso até agora declaradas por Erdogan sejam certamente questões que preocupam Ancara, na complexa esfera das relações internacionais, muitas vezes existem razões mais profundas por trás das declarações oficiais. Hoje, as decisões políticas relativas à política externa muitas vezes fazem parte de uma espécie de “quid pro quo” ou “toma lá, dá cá”. Foi exatamente esse o caso quando Washington reconheceu as pretensões territoriais de Marrocos em relação à região do Saara Ocidental, por exemplo: este reconhecimento ocorreu apenas depois que Marrocos normalizou suas relações com o principal aliado dos EUA no Oriente Médio, ou seja, Israel.
Ancara tem desempenhado um papel ambíguo dentro da estrutura da OTAN. Ela claramente faz bom uso de seu poder de veto para obter vantagens. Afinal, quais poderiam ser os objetivos mais prementes da Turquia de Erdogan no que diz respeito à questão sueca? Ora, a questão não diz respeito apenas a Ancara e Estocolmo: Washington tem pressionado pela adesão da Suécia e da Finlândia à aliança atlântica desde o início.
A questão deve ser entendida também como parte do novo projeto para a organização atlântica, dominada pelos Estados Unidos, como ficou claro durante o Cúpula de Madri da OTAN. Após esta Cúpula, em junho de 2022, Biden afirmou que o presidente russo, Vladimir Putin, buscava a “finlandização da Europa”, mas ganharia, em vez disso, a “NATOização” do continente. Portanto, a questão Suécia-Finlândia faz parte da militarização do continente europeu, objetivo buscado por Washington, que também deseja tornar a Europa cada vez mais nuclearizada. De fato, a adesão dos dois países estenderá o alcance territorial da Aliança Atlântica até o flanco leste do Ártico russo, assim fazendo da Rússia o único país não pertencente à OTAN no Ártico. Isso faz parte da agressiva estratégia ocidental mais geral de “cercar” e encurralar a Rússia de todas as formas.
Tendo-se em mente a notória disposição para se expandir da OTAN, pelo menos desde 1999, o que, diga-se de passagem, foi uma quebra da promessa de 1990, pode-se argumentar que os principais objetivos de Moscou até agora têm sido defensivos e têm sido uma resposta a essa situação, e pode-se argumentar ainda que a expansão da OTAN foi e é uma das principais causas do conflito hoje na Ucrânia.
Dito isto, Ancara, no entanto, tem seus próprios objetivos geopolíticos para a Ásia Ocidental e Ásia Central e para além. Esses objetivos centram-se sobretudo nas ideias do turanismo e do panturquismo, assunto sobre o qual eu escrevi algumas vezes. A agenda agressiva turca, de fato, pode até complicar ainda mais sua já complexa relação com a Rússia.
Em novembro de 2022, a Turquia já estava reparando operações militares contra os curdos no norte da Síria. Na verdade, em julho de 2022 já ficara claro que a questão da adesão sueca à OTAN poderia abrir caminho para mais demandas turcas referentes a grupos curdos na Síria que se rebelam contra a ocupação turca daquela região. Pode-se dizer que Ancara trava uma guerra não declarada com seu vizinho sírio já há algum tempo. As forças turcas e os seus “proxies” [grupos armados de outros países que a Turquia tenta instrumentalizar) controlam a cidade de Afrin, no norte da Síria, desde 2018, por exemplo, e parece que Ancara vem buscando ocupar ainda mais territórios e “turquificar” uma porção ainda maior das áreas rebeldes de lá: tem dado ainda suporte a militantes turcos na fronteira sírio-turca e impôs um currículo escolar turco em algumas áreas ocupadas.
Halil Karaveli, pesquisador sênior do Central Asia-Caucasus Institute & Silk Road Studies Program Joint Center, argumenta que o que Ancara realmente quer não é apenas que a Suécia tome algumas medidas, mas sim o fim do apoio americano a grupos curdos na Síria.
Os EUA continuam a apoiar grupos curdos rebeldes na Síria, como o Partido da União Democrática (PYD) e as Unidades de Defesa do Povo (YPG). Washington também tem armado e financiado rebeldes ligados ao PKK na Síria, que lutaram contra o Daesh (o chamado “Estado Islâmico” ou ISIS). Do ponto de vista de Ancara, um “proto-Estado” curdo adjacente à fronteira turca com a Síria seria uma ameaça existencial, de acordo com Karaveli. Para os EUA, no entanto, esses grupos armados curdos são aliados importantes em sua guerra por procuração com o Irã, outro ator importante na região. Para a Turquia, são inimigos do Estado e, sendo assim, é quase certo que ela nunca permitirá que a Suécia se torne Estado membro da OTAN, a menos que os EUA mudem sua política em relação aos curdos. Em outras palavras, os objetivos e interesses americanos na Europa e no Oriente Médio simplesmente não podem ser conciliados.
Se Washington está pronto ou não a “sacrificar” a guerra por procuração que trava na Síria (instrumentalizando grupos curdos) em troca da entrada da Suécia na OTAN, ainda não se sabe.
Essa situação complexa também coloca a Rússia em uma posição muito complicada, pois Moscou diplomaticamente consegue ainda “equilibrar” suas relações bilaterais com parceiros seus como a Turquia, Síria e Israel. Embora envolvida ela própria em um grande conflito agora, a Federação Russa ainda detém o poder brando (“soft power”) e os recursos para agir como um mediador junto a esses diferentes estados da Ásia Ocidental, como parece estar fazendo agora.
Nota da Frente Sol da Pátria:
Muito se fala na “Nova Guerra Fria”, que é real. Nos meios nacionalistas, existe um discurso segundo o qual toda nação emergente estaria obrigada a “tomar partido” contra os Estados Unidos. O caso turco mostra que não existem só dois lados no conflito atual na Ucrânia. Uma potência emergente como a Turquia não assume o lado americano nem o russo, mas sim o turco, de acordo com seus próprios interesses (goste-se ou não deles, neste caso específico). Guardadas as proporções, o Brasil, mutatis mutandis, deve adotar postura análoga a essa. Contra a armadilha de uma nova bipolaridade (em meio a uma Nova Guerra Fria), devemos responder com um novo Movimento Não-Alinhado, com o não-alinhamento e o multi-alinhamento.
Nem Washington nem Pequim nem Moscou!
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