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Neoplatonismo e o Cuidado da Alma

A filosofia do período helenístico esteve marcada por uma preocupação crescente com as questões éticas. Os ensinamentos dos filósofos helenísticos eram, em grande medida, pensados com o intuito de servir como guias para o aperfeiçoamento moral e espiritual, ao mesmo tempo, dos próprios filósofos e de seus estudantes.

Neste contexto, -afirma J. C. Thom- diferentes tradições filosóficas conceberam sistemas que deveriam servir como guias no caminho em direção à maturidade espiritual — esses sistemas, por vezes denominados como “psicagógicos” pelos estudiosos, eram caracterizados por um conjunto de saberes e prescrições que priorizavam o cuidado intelectual, moral e espiritual. A ideia de “aconselhamento filosófico” e aperfeiçoamento moral através da psicagogia poderia envolver um conjunto de disciplinas e exercícios diversos que eram adotados de maneira mais ou menos incisiva por epicuristas, estoicos, neopitagóricos, platonistas e outros.



Sócrates e seus estudantes, ilustração retirada de ‘Kitab Mukhtar al-Hikam wa-Mahasin al-Kilam’ de Al-Mubashir. (Século XIII).
Sócrates e seus estudantes, ilustração retirada de ‘Kitab Mukhtar al-Hikam wa-Mahasin al-Kilam’ de Al-Mubashir. (Século XIII).

Mas, de todo modo, qual é exatamente a relação entre os ensinamentos de Plotino e essa “inclinação psicagógica” que marcou as vertentes filosóficas da era helenística? Quais são as características fundamentais do pensamento ético plotiniano?


Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o neoplatonismo não pode ser reduzido a uma construção abstrata sobre uma “série de hipóstases” ou a uma ontologia. Para Beierwaltes, quando nos debruçamos sobre a filosofia neoplatônica encontramos um determinado modo de vida (lebensform): pensar o Uno é uma forma de “vida filosófica” segundo “[…] dem Geist und dem Einen als Weisen von Einheit.”; ou, como afirma Plotino, uma fuga daquele que se tornou uno em direção ao próprio Uno.

Em segundo lugar, é preciso chamar atenção para o que diz Plotino no passo I.2.[19].6 das Enéadas, quando afirma que a meta fundamental do homem é “[…] not to be out of sin, but to be god”. Não devemos interpretar esse gnoma como uma “afirmação orgulhosa”, diz Regen, o que implicaria imputar a Plotino a grave condenação de impiedade. A afirmação deve antes ser entendida na perspectiva platônica encontrada no Teeteto 176ab, passagem evocada por Plotino no início do tratado recém-mencionado:

Sim, mas não é possível, Teodoro, nem que os males desapareçam, pois tem de haver sempre alguma coisa contrária ao bem; algo, entretanto, nem que eles tenham lugar entre os deuses. É uma necessidade que os males circulem entre o gênero humano e sobre este mundo. Por isso devemos tentar fugir o mais depressa possível deste mundo para o outro. Ora, esta fuga consiste em tornarmo-nos, dentro do possível, semelhantes à divindade e sermos semelhante à divindade é tornarmo-nos justos e piedosos com a ajuda da inteligência.


Regen nos recorda que, para Plotino, Deus não pode ser identificado com o princípio primeiro, porque o Uno “está além de Deus, é ‘maior e mais perfeito’ do que Deus, porque é a realidade que está acima de todas as realidades”.


O Deus a que Plotino se refere é a realidade inteligível, o mundo das ideias plotiniano, o Intelecto, onde “essência e existência coincidem […] sujeito pensante e o objeto pensado são a mesma coisa”, onde não há mudança, nem antes e depois, onde todas as coisas são eternas. Em suma, a proposta da “ética plotiniana” é: assemelha-te a Deus.


Segundo Dillon, para Plotino, toda e qualquer ação deve ser analisada sob o prisma de sua capacidade para aproximar o homem da natureza divina. Não obstante, o itinerário da alma não encontra seu termo final na união com o Intelecto, mas no retorno ao princípio absoluto, na união mística com o Uno.


Antes de continuarmos, é preciso considerar o dualismo alma-corpo em Plotino. Regen, referindo-se à passagem VI.8.[39].12, fórmula da seguinte maneira a concepção fundamental do homem em Plotino:

De um lado, temos o homem do mundo inteligível, que é eterno, superior. Ele coincide com a alma racional, que pertence a este mundo belo, exemplo e forma do mundo temporal. Do outro lado, há o homem do mundo sensível, que é gerado; ele é um ser composto: a sua alma — embora de forma fraca e provisória — está unida à matéria, a um corpo. Por isso, enquanto corpo, ele está longe da essência, do seu mundo original; enquanto alma, porém, é partícipe da essência.


Nossa verdadeira alma (a “alma superior”) é essa essência que reside no mundo inteligível, ao passo que o “composto”, uma combinação do corpo e de uma espécie de “força animadora” (a “alma inferior”)— um traço da natureza anímica que “ilumina” o corpo — se encontra sujeito às paixões e desejos mundanos . A via para o regresso da alma à origem passa necessariamente pelo gradativo afastamento da matéria; do que é composto e comporta alteridade — a escalada espiritual do homem é uma fuga mundi.


Plotino (I.6.[1].8) recorre à imagem de Ulisses e a sua fuga da maga Circe e de Calypso — símbolo da fuga que deve empreender o homem imerso nas realidades do mundo sensível.

Ullmann nos fala de “dois caminhos convergentes, orientados pela dialética”, para esse retorno, e que concernem à: i) Intelecto e, o outro, ii) Vontade. Ambos conformam a via da purificação. O Intelecto adquire, portanto, um papel fundamental — através dele “a alma capta a beleza em todas as suas formas, seja a beleza intelectual, interior, seja a beleza da arte ou do mundo circundante”.


É através do belo que a alma deve retornar a si mesma e recordar sua origem divina: o belo do mundo sensível deve conduzir a alma à beleza inteligível. O homem deve transcender a beleza sensível, que é apenas uma espécie de lembrança do verdadeiramente belo, porque as coisas do mundo sensível são belas em razão de sua participação na forma (I.6.[1].2).


À vontade compete orientar a alma no caminho que deve culminar na união extática com o Uno. Para tal, é necessário exercitar-se na prática das virtudes e compreender o papel da erótica — retornaremos a esse ponto em outro texto.

Plotino distingue as virtudes em dois tipos: as cívicas e as catárticas ou intelectuais. As virtudes cívicas são a temperança, prudência, coragem ou fortaleza e a justiça e devem manter limitados os desejos e paixões humanas, possibilitando ao homem um estado de afastamento das opiniões enganosas. É importante pontuar que as virtudes cívicas não representam o ponto final do itinerário da alma, mas apenas o início da caminhada.


Elas submetem o homem, portanto, ao limite e à medida dos modelos do mundo inteligível, livrando-o do domínio do disforme e ilimitado. O exercício das virtudes cívicas, contudo, não tem a capacidade de fazer a alma assemelhar-se ao divino ou é inapropriado para tal — recordemos que o Deus, isso é, o Intelecto, transcende toda virtude, mesmo aquelas denominadas intelectuais.

As virtudes intelectuais são as mesmas que as virtudes cívicas, mas devem ser entendidas em sua referência ao Intelecto e ao ato de contemplação que o seu exercício implica. Neste sentido, explica Regen, embora se deva admitir que, no domínio do Intelecto, tudo é imutável e perene e, assim, não podem existir virtudes, quando a alma se purifica e contempla essas realidades divinas, é capaz de ascender e a elas assemelhar-se. Plotino (I.2.[19].3) descreve as virtudes intelectuais do seguinte modo:

“What then do we mean when we call these other virtues “purifications,” and how are we made really like by being purified? Since the soul is evil when it is thoroughly mixed with the body and shares its experiences and has all the same opinions, it will be good and possess virtue when it no longer has the same opinions, but acts alone — this is intelligence and wisdom — and does not share the body’s experiences — this is self-control — and is not afraid of departing from the body — this is courage — and is ruled by reason and intellect, without opposition — and this is justice. One would not be wrong in calling this state of the soul “likeness to God,” in which its activity is intellectual, and it is free in this way from bodily affections. For the divine too is pure, and its activity is of such a kind that that which imitates it has wisdom.”


Em última análise, a alma só será capaz de ascender em direção ao Uno pelo amor das formas — a via purgativa é uma erótica que conduz a alma nessa escalada espiritual. O princípio primeiro, que é o Bem, o Belo em si, chama a alma e esta responde quando transcende a beleza sensível e se eleva extaticamente porque “[…] the love which belongs to the higher soul is a god, who always keeps the soul joined to the Good” (III.5.[50].4) [3].


Em Plotino, afirma Hadot, amor é sinônimo de amor pelo Bem — a alma é invadida por essa presença que demanda veneração absoluta, solitária, que não permite qualquer outra coisa além de si mesma. O ponto de chegada é, portanto, o Bem em si, não porque a alma se deparou com um limite, mas porque alcançou a união com o Absoluto; Aquele que a tudo transcende, a quem sempre desejou desde o princípio.


Referências citadas no texto (na ordem em que apareceram): THOM, J.C. The Pythagorean Golden Verses. 1. Ed. New York: E.J.Brill, 1995.


REGEN, J. T. A Ética em Plotino. AQUINO, J. E. F.; FRAGOSO, E. A. R.; SOARES, M. C. (Org.) Ética e Metafísica. Fortaleza: Ed. UECE, 2007.


ULLMANN, R. A. Plotino - O Retorno ao Uno. Revista Veritas, Porto Alegre, v. 41, nº 161, p. 27-36, 1996. BEIERWALTES. W. Catena Aurea. Studien zu Augustinus, Plotin, Eriugena, Thomas von Aquin, Nicolaus Cusanus. 1. Ed. Frankfurt am Main: Verlag Vittorio Klostermann, 2017. PLOTINO. Enéada. Texto grego e tradução inglesa em 7 volumes de Arthur Hilary Armstrong (vol. I: introdução, Vida de Plotino e Enéada I; vol. II: En. II; vol. III: En. III; vol. IV: En. IV; vol. V: En. V; vol. VI: En. VI 1-5; vol. VII: En. VI 6-9) Loeb Classical Library, Cambridge/ Mass, Harvad University Press, 1966-1988. HADOT P. Plotinus or The Simplicity of Vision. 1. Ed. The University of Chicago Press, 1998.

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