top of page

“Sobrecarregados”, os EUA podem apostar numa Europa nuclear para se voltarem à Ásia

Texto por Frente Sol da Pátria - traduzido e adaptado de http://infobrics.org/post/37736/


Nesta semana, líderes globais participam da Conferência de Segurança de Munique, que acontece pouco antes do aniversário de um ano da campanha militar da Rússia na Ucrânia. Como a chamada “fadiga da Ucrânia” persiste no Ocidente, é de se esperar que as tensões envolvendo EUA e China sejam um tópico proeminente no evento. Embora “sobrecarregados” e em declínio, os EUA ainda insistem em tentar atingir seus perigosos objetivos políticos de “contenção dupla”, visando “cercar” e “conter” duas grandes potências ao mesmo tempo, a saber, China e Rússia. Para fazer isso, Washington precisará apostar cada vez mais em atores proxy e guerras proxy (por procuração).


Jonathan Askonas e Gill Barndollar, dois pesquisadores do Catholic University of America's Center for the Study of Statesmanship, argumentaram em um artigo de julho de 2022 que, tendo a Suécia e a Finlândia como membros da OTAN, os EUA poderiam então voltar-se ao Pacífico. O raciocínio deles continua relevante: eles argumentaram que os estados bálticos seriam um ponto crítico para a Aliança Atlântica e, portanto, a adesão da Finlândia e da Suécia poderia transformar o Mar Báltico em um “lago da OTAN”, de uma perspectiva americana, como também argumenta Andreas Kluth (um jornalista que escreve para o Economist), dando assim à Aliança os meios para melhor “defender” a Estônia, a Letônia e a Lituânia. Ambos os estados nórdicos mencionados aumentaram tremendamente seus gastos com defesa nos últimos anos.


Askonas e Barndollar, em resumo, escrevem que, neste cenário, embora o “guarda-chuva nuclear” da América permaneceria, o “fardo” da “dissuasão e combate convencional” na Europa ficaria a cargo dos membros europeus da OTAN. Então, com os dois países escandinavos na OTAN, os Estados Unidos, um pouco menos “sobrecarregados”, poderiam mirar também no Pacífico.


Em outra ocasião, escrevi sobre como existem sinais hoje de que a ordem mundial dos EUA está em declínio: até mesmo seu poder militar foi considerado, pela primeira vez, “fraco” pelo relatório chamado “2023 Index of U.S. Military Strength” da Heritage Foundation. Enquanto isso, a influência comercial, diplomática e militar da China está em alta na América Latina, no contexto da nova Guerra Fria.


Os Estados Unidos ainda usam o dólar como arma, muitas vezes descrito como a “bomba do dólar”. No entanto, um processo internacional de desdolarização já se iniciou, marcado pela decisão de Moscou, em março de 2022, referente ao uso de rublos para pagamentos relativos ao gás russo. Outros sinais desse processo incluem a cooperação China-Arábia Saudita e até a decisão da OPEP+ de fazer um corte na produção de petróleo, o que pode impactar o petrodólar, outro pilar do sistema financeiro ocidental, segundo M. K. Bhadrakumar, ex-diplomata indiano.


O historiador Stephen Wertheim, em entrevista ao editor-chefe de Foreign Policy, Ravi Agrawal, fez uma excelente observação sobre o fato de Washington estar “sobrecarregado”, já que tem que projetar demasiado seu poder hoje. Sendo assim, Wertheim, assim como muitos “realistas” em política externa (como o professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, Stephen M. Walt), argumenta que os Estados Unidos deveriam, assunto sobre o qual também escrevi, exercitar uma espécie de “freio” (“restraint”), o chamado “offshore balancing”, “contendo-se” ou “freando” em Taiwan e na Ucrânia, entre outros lugares.


O problema é que Washington vê como sua missão e raison d'être permanecer sendo a única superpotência do mundo. Portanto, qualquer ameaça à unipolaridade americana é percebida pelo establishment americano como um risco existencial, de acordo com Andrew Latham, professor de relações internacionais e política teoria no Macalester College em Saint Paul. Essa visão está enraizada no excepcionalismo americano e sua origem remonta à metáfora bíblica dos puritanos sobre a “cidade sobre uma colina” (“city upon a hill”), como Thomas E. Woods Jr., pesquisador sênior do Ludwig von Mises Institute, argumentou brilhantemente em um artigo de 2012 que permanece atual.


Sendo assim, parece que Washington, em uma espécie de “plano B”, prefere pressionar por uma nova bipolaridade a aceitar o surgimento de qualquer nova ordem mundial multipolar.

No entanto, em 2022, muitas vozes americanas já expressavam dúvidas sobre a capacidade dos EUA de “combater a Rússia” e, ao mesmo tempo, focar na China, como Daniel W. Drezner, professor de política internacional na Fletcher School of Law and Diplomacy na Tufts University, escreveu em maio de 2022.


Nesse sentido, os EUA podem de fato precisar repensar sua atual política de contenção dupla e “escolher” um foco. Washington tem pressionado por mais militarização e nuclearização da Europa, como visto em seu envio antecipado de enebombas de gravidade termonucleares B61-12 para a Europa, em dezembro de 2022. Após a Cúpula da OTAN de 2022 em Madri, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que seu colega russo, Vladimir Putin, deveria se preparar para ver a “NATOização da Europa”. Assim, as especulações de Askonas e Barndollar fazem cada vez mais sentido como um possível cenário no qual Washington poderia apostar - especialmente à luz da recente escalada das tensões sino-americanas relacionada à questão dos supostos balões de espionagem chineses, em uma clara tentativa dos EUA de impedir qualquer détente com seu rival asiático.


Tal cenário para a Europa, de qualquer modo, ainda dependeria de uma série de fatores, sendo um deles obviamente a própria viabilidade da candidatura da Suécia e da Finlândia à adesão à OTAN. Até agora, a Turquia tem bloqueado-a de forma obstinada e, para reverter a posição turca sobre esta questão, Washington teria que repensar suas políticas para o Oriente Médio em relação aos grupos curdos na Síria. Como escrevi em 10 de fevereiro, é impossível conciliar os objetivos americanos na Europa e no Oriente Médio. Este é mais um dilema que os EUA enfrentam e, à medida que avança a lenta onda global em direção à multipolaridade e à desdolarização, tais desafios e contradições, do ponto de vista americano, irão aumentar.


Nota da Frente Sol da Pátria:


Existem vários sinais de uma transição global a uma multipolaridade, porém, por mais que a hegemonia americana seja opressora, a transição para o mundo multipolar, longe de ser um “mar de rosas”, também traz seus riscos e desafios para todos os atores envolvidos - inclusive o risco de uma nova bipolaridade no contexto da nova Guerra Fria. A grande contradição existencial da Europa hoje é depender dos EUA, em questões segurança, e, ao mesmo tempo, da Rússia, em questões energéticas. Uma Europa soberana e fora da OTAN e da zona de influência americana seria o ideal, porém, evidentemente, este é um cenário extremamente improvável. Cabe ao Brasil saber navegar este período de transição, com base na convivência harmoniosa com os vizinhos, no multi-alinhamento ou não-alinhamento, na política externa independente, e na busca pela industrialização e desenvolvimento nacional.

0 comentário
bottom of page