Uma versão deste texto foi originalmente publicada na revista Valete, número 16, em junho de 2024 - segue atual
Na nova religião civil (cujo culto global, sacramentos e Mistérios, deverão se tornar oficiais e obrigatórios, a depender da luta diligente de alguns) tudo é sombra e ilusão: menos o Fascismo Eterno (substância maligna) e a identidade transexual, que é uma Hierofania, a própria manifestação transfigurada da Divindade, Divindade esta que, obviamente, é uma mulher trans (possivelmente negra, mas as diferentes seitas divergem quanto a este Aspecto específico do Ser Supremo).
Ficou legal este começo, hein? Você no mínimo levantou a sua sobrancelha, como dizem os gringos - talvez tenha até cuspido o café omnipresente. Ou torcido o nariz diante de mais uma direitice absurda, fascista e mimizenta. Dizem, em todo caso, que o início de um livro ou texto deve ser chamativo - e deve ser por isso que Nabokov iniciou aquela historinha pervertida e politicamente incorreta com as palavras “Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama” e, depois, veio com aquela conversa sobre fones consonantais aproximantes laterais alveolares (o som de L fazendo a língua bater no dente), que sempre achei que falava sobre outra coisa - mas nada entendo de literatura. Nabokov, que odiava Dostoievski, tinha mesmo o dom de escrever sobre velhos tarados pedófilos, sobre qualquer coisa - ou mesmo sobre nada - de forma prazerosa, bela, elegante e cheia de estilo. É coisa de francês, acho. O poeta cuiabano Manoel de Barros, explicando a diferença entre ele próprio e Flaubert (outro francês), comenta que, em 1852, Flaubert escreveu a uma amiga, em carta, que gostaria de fazer um livro sobre nada. “Ele queria”, diz Manoel de Barros, “o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo” - e aí prossegue falando sobre formigas, lagartixas e essas coisas.
Não é só na literatura (em poesia e prosa) que os escritores e pensadores gostam de revelar, com suas penas, o “nada” escondido nas coisas. Esse tem sido também o trabalho intenso de antropólogos, historiadores, cientistas sociais e outras dessas criaturas estranhas que, em geral, não escrevem tão bem quanto Flaubert, Nabokov e Manoel de Barros - mas escrevem também bastante sobre nada (nos dois sentidos). Ali, onde vemos um dado inescapável da vida, a realidade da morte e do sexo, por exemplo, eles vão e, num gesto de prestidigitador às avessas, arrancam aquilo que, no fundo, era superfície e era máscara. E revelam que, por baixo, estava, olha só, miragem, narrativa e construção - que não deixam de ser, comparativamente, um tipo de nada. O modus operandi deles é mais ou menos como o daquele rapaz meio galã canastrão iluminista do turma do Salsicha e Scooby-Doo, que arrancava a máscara dos fantasmas e vilões para revelar-lhes a verdadeira identidade - e esta era sempre decepcionante: tal fórmula só funciona, aliás, com Sherlock Holmes; toda outra tentativa falhou e é por isso que há um impossível cachorro falante ali, para equilibrar esse naturalismo entediante.
Contudo, eu falava sobre a nadificação intelectual: em famoso debate de 1989, Marilyn Strathern, pensadora sofisticada, defendia a abolição do conceito de sociedade nas ciências… sociais. O paradigma da “invenção da tradição” (de Eric Hobsbawm etc) predomina nos estudos sobre nações e nacionalismo. Sempre é, nos asseguram, a invenção de alguns “etno-empreendedores” marotos (Brubaker), que inventam as identidades nacionais ex nihilo, assim como Gilberto Freyre, dizem, inventou o conceito de Nordeste para poder reinar - ou algo assim. Christoph Brumann teve que recentemente (ok, em 1999) escrever um artigo defendendo que faz sentido, sim, na antropologia usar o conceito de “cultura”, mesmo as coisas sendo, no fundo mais complicadas, afinal, “o mapa não é o território”, os conceitos são heurísticos e o ser humano precisa mesmo generalizar senão não faz teoria nenhuma (não foi isso que ele escreveu, mas estou simplificando aqui, para além do limite da deturpação). Ora, a depender dos intelectuais, abolimos todos os substantivos abstratos ou até todo substantivo comum em geral e deixaremos só os nomes próprios: não poderemos falar mais em “cachorro” (generalização absurda que apaga a multiplicidade de criaturas tão diferentes quanto um mastim, o pug e o caramelo da esquina): teremos que falar só em Totó, Rex ou Bidu, no caso a caso. Novos dicionários podem ser encomendados (cada um com seu nome).
Aliás, a constatação, em todo caso, de que muitas coisas são “construções sociais” não faz com que elas deixem de ser reais por causa disso - trata-se de um imenso non sequitur. Em “As técnicas do corpo”, publicado postumamente 74 anos atrás, Marcel Mauss escreve que, no ser humano adulto, quase nada é “natural”: da forma de andar e rir à posição de dormir e parir, temos técnicas aprendidas por processos de socialização e culturalização, que variam com os povos. O ser humano é um animal cultural, social e político e o paradigma biocultural da dupla herança não me deixa mentir. O francês, contudo, não negava a realidade do corpo, do sexo ou da morte.
Voltando ao que nos interessa, sem mais delongas, trata-se, aqui, da mania acadêmica de problematizar e desconstruir conceitos e dicotomias - como afirmei acima que faziam com a morte e o sexo, essas dualidades fundamentais da vida. Morte traz consigo a dicotomia entre, de um lado, os viventes mortais e, doutro, o mortos. Minto, aliás: até onde sei, nenhum intelectual negou (ainda) a realidade da Morte - só o Hitler ficcionalizado do filme russo “Moloch”, mas acho que não conta. A realidade do sexo, esta, sim, negam-na e seguem negando. E, se engana muito quem pensa que falam só de gênero. A abolição da distinção mesmo entre sexo e gênero é feijão com arroz do debate acadêmico bem informado hoje - e vide o projeto “Future of Legal Gender (FLaG)”. Uma consequência prática disso pode ser vista na manchete "Mulheres trans e travestis devem receber cuidados em saúde de forma integral, não só no que diz respeito às identidades, diz ginecologista" - o tema está em várias cartilhas também. A outra consequência prática mais óbvia e eloquente pode ser vista em todo o esporte feminino.
Seria tentador descrever a premissa filosófica por trás dessas tendências como uma não-essencialismo radical. O não-essencialismo, de fato, pode ser libertador - sobretudo quando se funde a um sócio-construtivismo hardcore (de tipo individualista performático) e a um identificacionismo.
Entretanto, se trata, claro, de algo mais complexo e intrincado. Se, no discurso do culto, um tipo de “nada” ou de miragem se esconde por trás de várias coisas, é preciso, agora, levantar o véu desse próprio discurso. E, para ele, talvez haja, sim, por baixo do “nada” alguma coisa.
Embora adote um discurso “exotericamente” não-essencialista e processualista, que pinta o mundo como uma correnteza de coisas em processo, fluindo e coisa e tal; na sua práxis político-identitária, essa nova religião é bem diferente - é engessadora e fetichizante: tomada pela síndrome do carimbador maluco (da canção de Raul Seixas), a militância identitarista quer rotular e enquadrar as pessoas, à força, em categorias bem definidas - se possível, por força da lei. Meninas que gostam de brincar com meninos e de se vestir de certa maneira (as maria-rapaz de Cabo Verde, as tomboy inglesas, as menina-molecas) são, assim, carimbadas e colocadas na camisa-de-força da identidade de “homem trans” - pesquisem sobre os casos dos de-transitioners e verão do que estou falando. No Hospital das Clínicas da USP, já temos as “280 crianças e adolescentes trans” incluindo 100 crianças “4 a 12 anos de idade”, que “fazem transição de gênero”, conforme leio na manchete do Globo de 29 de jan. de 2023 (não, não é fake news).
Da mesma maneira, pessoas que, no Brasil, são descritas de forma fluida e ambígua (com palavras como “morenas”, “mulatas” e inúmeras outras) são pressionadas a se posicionarem politicamente como negras - num apagamento das ancestralidades ameríndias e caboclas - ou empurradas para a categoria (maligna) de “branco”. Não é de se admirar que um dos maiores e mais solenes debates nos meio identitaristas seja justamente sobre se a cantora Anitta é branca ou negra - e outra opção parece não haver além dessas duas. Nas descrições raciais, que, historicamente sempre abarcaram, no Brasil, várias categorias (cafuzo, caboclo, mulato etc), os identitaristas impõem, com a mão na cintura e os zóio arregalado, a ditadura do binarismo racial. Já nas categorias de gênero, promovem o contrário: a multiplicação febril de identificações, a orgia da Libertad.
Como já escrevi por aí, ora multiplicando, ora binarizando, na prática, o identitarismo, além de reenquadrar e desalinhar identidades (isolando-as e insularizando-as), também promove diferentes formas de segregacionismo racial, de gênero e outras - como quando promove “espaços de convivência” - só de negros ou só de mulheres - como “espaços seguros”. Com uma roupagem progressista e iluminada, na prática, o identitarismo promove formas de apartheid e um neo-puritanismo vitoriano, por meio da higienização e domesticação da fala, da cultura popular. São esses tiranetes neofascistas (de tipo antifascista) que determinam que fantasia é permitido usar no carnaval, que homem barbudo de saia pode usar banheiro feminino, sim, se é lícito homem mijar em pé ou sentado, se é lícito mulher foder deitada ou de quatro (com perdão do termo chulo - não sei explicar de outro jeito; é que a segunda opção reforçaria o Patriarcado ou algo assim) e todo tipo totalitário de minúcia neurótica, sempre acompanhada de confissões, culpas e ritos públicos de autoflagelação.
Repare que não se trata, aqui, de um bicho fácil de descrever, com seus vários nomes. O “pós-modernismo” ou “identitarismo” woke ou - por que não? - o turbo-tecno-progressismo busca, parece, “desconstruir” todas as “grandes narrativas” enquanto promove uma multiplicação das pequenas narrativas (seja de forma binária ou não) - e é aí que entram, afinal, as identidades. Toda identidade, para o neoidentitarista, é válida, inclusive pelo critério individualista da autoidentificação. Aliás, toda identidade é válida - menos a nacional. Esta, para eles, é uma “invenção”, uma “ficção” (faceta do Fascismo Eterno?) que tem de ser constantemente denunciada e desconstruída - enquanto as categorias gender-fluid, aporagênero, “não-binárie”, “genderfuck”, demigênero, e inúmeras outras são fetichizadas, essencializadas e entendidas como naturais.
Repito: no novo culto, todas as identidades são incentivadas, menos a identidade nacional. E, em todas as questões macro, é justamente a perspectiva nacional quese faz necessária - ali, o empreendedorismo político identitarista nada pode fazer senão criar nichos, lobbies; ele é incapaz de oferecer qualquer solução estrutural - que só poderá ser encontrada na ideia de nação e de projeto nacional (mas esta é outra conversa). Aliás complemento: toda autoidentificação será celebrada - menos a masculina e branca, que é karma e motivo de vergonha.
Na mesma toada, paradoxalmente, a masculinidade é, para a nova seita, “construída” socialmente por meio de uma série de mecanismos perversos - mas a “criança trans” é uma realidade natural, mensurada pela ciência. Nesses casos específicos, entende-se que a pessoa “é” e “nasceu” de determinada forma. Parece contradição - mas não é bem isso.
É que a masculinidade, para a religião do futuro, no fundo, no fundo, não é vista como mera construção - ela é, isso sim, mais uma hipóstase do Fascismo Eterno, que, junto com Patriarcado (no fundo, duas faces da mesma fera) é, sim, uma categoria eterna e absoluta. E, evidentemente, maligna. É isso que tem de ser combatido, em uma luta de vida e morte, não por ser uma “construção”, mas por ser maligno. Como dizem eles, é sobre isso. Quando entendemos a faceta esotérica do novo culto, as coisas começam a fazer mais sentido. É justamente pela lógica mágica da inversão que a mulher trans (geralmente branca) ocupa um patamar ontológico muito superior ao da mera mulher cis - ela é, afinal, a transfiguração transgessora do Mal absoluto: o homem branco. É o chumbo transformado em ouro - e coroado.
Na República Islâmica do Irã, que é um hub de cirurgias de “redesignação sexual” (com o perdão do anglicismo): o Ayatollah Ruhollah Khomeini, em 1967 e depois em 1983, emitiu duas fatwa autorizando o procedimento, com base em um entendimento sobre a possibilidade, por exemplo, de uma alma feminina residir, por alguma infelicidade, em uma corpo masculino. Trata-se de uma teocracia, regida pela Sh’aria, ou Lei Islâmica, que reconhece a existência do mundo material, o espiritual e seu Criador, com a sabedoria de Suas leis eternas.
No planeta dos identitaristas, a princípio nada platônico, em contraste, nada é eterno, nada é natural, nada possui essência - nem menos os sexos masculino e feminino, aqueles da genitália, da TPM e da ereção. Tudo é construção, discurso, narrativa - num eterno devir, sempre livre, plástico e coisa e tal - menos a identidade trans. Esta é eterna, natural, uma essência, uma alma espiritual que não ousa dizer seu nome - tal como é, salvo engano, o entendimento no Irã (nesse caso). Todo o resto, para a nova religião, é transitório, passageiro, como aquele riacho ou lagoa da citação de Heráclito de Éfeso; menos o Fascismo. Este também é Eterno, uma Potestade das trevas eternamente em estado de cio (como na citação sobre cadelas) e sempre dado a se manifestar em diferentes formas para urdir infâmias - o nacionalismo seria uma delas. Entenda: a “nação”, narrada e construída, nunca é natural nem concreta; sempre invenção. Já o nacionalismo, enquanto hipóstase do Fascismo Eterno, é assustadoramente real, em uma teologia política maniqueísta em que o Mal - longe de ser mera privação do Bem - tem sustância - e deve ser combatido. É sobre isso.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
Contribua com nosso trabalho (pix):
Comments