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A miséria identitária no movimento indígena brasileiro

Não foi nenhuma surpresa a aprovação no congresso da PL 490, que institui a tese do marco temporal para a demarcação das Terras Indígenas. O projeto obteve 283 votos a favor e 155 contrários.



Foi uma grande derrota para o movimento indígena, que vem há mais de uma década lutando contra a tese do Marco Temporal. E foi também uma derrota para o governo, já que 1/3 dos votos favoráveis veio dos partidos da base aliada.


Um dia antes, a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, falava nos principais meios de comunicação sobre o Congresso ser “machista e racista”, praticamente dando como perdida a votação. Foi seguida no mesmo discurso pela deputada Célia Xakriabá, também do PSOL.


Trata-se do discurso padrão com selo 100% identitário, que pode ser usado para tudo. Todo o estado de coisas é resultado de uma injustiça que se estende entre o Céu e a Terra por meio das chamadas micro-opressões.


Dois dias antes, ambas tinham ido a Cannes prestigiar o talentoso Leonardo Di Caprio, que participa no filme de Martin Scorsese “Killers of the Flower Moon”, que trata do assassinato de indígenas americanos.

Nada contra a presença de ambas em Cannes, mas esse acontecimento explicita uma forma de fazer política que dá preferência ao estrelato, ao lacre, ao mundo artístico e com pouca ou nenhuma inserção no mundo da realpolitik.


À boca miúda, lideranças indígenas e outras ligadas ao movimento indígena já criticam essa predileção pelos holofotes, enquanto o jogo duro e real é deixado de lado. É realmente fascinante que os indígenas estejam cada vez mais presentes no mundo das artes, da cultura, da música. O problema é imaginar que a política se resume a isso.


Em relação ao movimento indígena brasileiro, é importante constatar que ele vem se fortalecendo na política institucional nos últimos anos. Houve um aumento significativo de indígenas ocupando cargos eletivos. Desde 2020, Prefeituras e Câmaras assistiram a um exponencial aumento da presença indígena. No Congresso, passamos de uma única parlamentar Joênia Wapichana, para cinco declaradas indígenas. Do PSOL, Célia Xakriabá e Sônia Guajajara, que acabou ficando com o novo Ministério dos Povos Indígenas criado por Lula. Mas houve também Silvia Waiãpi, uma militar do exército brasileiro filiada ao PL. E há também os recém autodeclarados indígenas: Juliana Cardoso e Paulo Guedes. Ambos do PT, eles já estavam na política há algum tempo e nas últimas eleições se declararam como indígenas.


É muito pouco para um congresso de 513 deputados. Mesmo assim, percentualmente representa 0,97% da casa, muito mais do que os 0,4% da população brasileira que se declara como indígena. É também a primeira vez que há uma Ministério dos Povos Indígenas e que temos uma indígena, Joênia Wapichana, à frente da FUNAI.Ou seja, não resta dúvida de que o movimento indígena é hoje mais robusto e representativo do que jamais foi na história, e ainda assim amarga duas derrotas seguidas no Congresso (o esvaziamento do MPI foi outra, na semana anterior).


Como não comparar a atuação de Sônia Guajajara e Celia Xakriabá com a de expoentes da história brasileira como Marechal Cândido Rondon e os irmãos Vilas Boas? Como eles puderam obter tantas conquistas importantes em períodos que vão desde a República Velha, passando pelo período Vargas e culminando na criação do Parque Nacional do Xingu, durante o governo do conservador e cristão Jânio Quadros?


Creio que a chave para esta resposta esteja na forma como a política é conduzida. A própria narrativa identitária adotada por uma parcela do movimento indígena (leia-se Célia e Sônia, no PSOL) depende da manutenção e confirmação do perfil “macho, branco, opressor” da sociedade brasileira. Não é uma política direcionada no sentido de transformar uma realidade, ou de dialogar com uma opinião contrária. É uma política que depende da derrota para ser relevante.


Como contraexemplo, temos o voto do deputado federal pelo Acre, Zezinho Barbary (PP). “Branco”, homem, ligado ao setor agropecuário, filiado a um partido de direita, Zezinho foi eleito pela região do Vale do Juruá, no Noroeste Amazônico, e teria, segundo a máxima identitária, todas as razões do mundo para votar a favor do marco temporal e contra os interesses indígenas. No entanto, procurado por lideranças indígenas da sua região, comprometeu-se com o voto contra a PL 490.

A PL deve agora ainda seguir para o senado e lá se espera uma longa batalha sobre a constitucionalidade do texto. Felizmente, nem só de identitarismo vive o movimento indígena brasileiro. Há uma longa tradição de lideranças talhadas na espiritualidade xamânica dos pajés que busca o diálogo e a tradução dos mundos. Não é o caso, evidentemente, de Sônia e Célia. Elas, afinal, reproduzem não a sabedoria dos terreiros de suas aldeias, mas os lugares comuns do discurso universitário e progressista padrão da USP, Oslo ou Nova York.

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