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A mitopoética de Gerardo Mello Mourão

Atualizado: 5 de nov. de 2024



O escritor cearense Gerardo Mello Mourão (Ipueiras, 8 de janeiro de 1917, Rio de Janeiro, 9 de março de 2007) é uma figura bastante enigmática na história da literatura brasileira. Poeta laureado, vencedor do Prêmio Jabuti com seu épico Invenção do Mar, indicado ao Nobel de Literatura em 1979 e elogiado por figuras como Ezra Pound e Carlos Drummond de Andrade, Mello Mourão ainda é um desconhecido no Brasil.


Ainda garoto, Gerardo Mello Mourão saiu de sua terra e foi morar em Valença (RJ). Depois disso, entrou para o seminário São Clemente, dos Padres Redentoristas, em Congonhas do Campo (MG) e posteriormente fixou residência no Rio de Janeiro (RJ). A passagem de GMM no seminário, entretanto, explica, parcialmente, a proeminência do tema religioso, quando não mítico e metafísico, em sua obra poética. Foi nos exercícios litúrgicos, nas declamações dos missais e nos incensórios ritualísticos que o poeta entrou em um contato mais profundo com a dimensão sacra da vida. Além disso, o próprio autor afirmou saber “nove línguas, inclusive o grego e latim” e disso também deriva o seu diálogo constante com a tradição clássica.


Contudo, Mello Mourão realiza, em sua obra, um movimento dialético que tenciona com extremos aparentes: a terra natal x o mundo, o regional x o universal, o ritmo da poesia x a cadência da prosa. Em uma entrevista, ele diz:


A herança que eu tenho é o negócio do Ceará. O Ceará é negócio, a minha vida, a minha formação, o meu sentimento de País, o meu sentimento de Brasil. O resto é bobagem. O resto é… Toda minha obra literária se funda ali. Eu fiz outras coisas na vida, fiz política liberal, fiz política convencional no Brasil, fui Deputado, tudo isso. Eu ocupei muitas coisas. Mas tudo isso na minha vida foi adultério. O meu matrimônio é com a minha terra e com a minha poesia, que é fundada ali, começou ali. Então, é a minha vida, é a minha poesia, o resto é besteira. Tudo é adultério, o matrimônio foi aquele ali (MOURÃO, 2001)

Nos anos 1940, esteve em Buenos Aires e se juntou a um grupo de cinco colegas (Abdias do Nascimento, Godofredo Iommi, Raúl Young, Efraín Bó e Napoleão Lopes Filho), que se autodenominou “La Santa Hermandad Orquidea”. A irmandade, uma espécie de guilda poética, fez um pacto de viajar pelo mundo e renegar toda a produção lírica feita até aquele momento. O grupo adotou como divisa o lema “Ou Dante ou nada”.


A convivência com a confraria teve considerável influência na obra posterior de Gerardo Mello Mourão. Em primeiro lugar, a ideia de conhecer a América e escrever um épico nativo, uma espécie de Amereida, até foi esboçada pelo grupo, mas só concretizada, de fato, com o poema Invenção do Mar, escrito por Mourão em 1997 e vencedor do Prêmio Jabuti em 1999 (façanha repetida por GMM em 2003 com o livro Algumas Partituras). Segundo o livro Breve Memória Crítica da Obra de Gerardo Mello Mourão, Ezra Pound teria afirmado que: “em toda minha obra o que tentei foi escrever a epopeia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi este poeta de O País dos Mourões”.


As andanças e experimentações da confraria poética parecem ter moldado em GMM determinada concepção do poema como algo que deve ser submetido a um elemento que o ultrapassa. Tal entendimento, prefigura a “caça aos mitos fundadores” que envolverá seus principais trabalhos poéticos. Ao comentar sobre as atividades do grupo, mas falando de si mesmo, Gerardo explana:


Sem desertar do pacto ambicioso feito pelos jovens que a si mesmo chamaram “La Santa Hermandad Orquidea”, e dos quais está certo de que pelo menos um- Godofredo Iommi- chegou ao que se propusera, sabe hoje, amadurecido no orgulho e na humildade, que a poesia é mais importante que o poema. O mito é mais importante do que a obra. Como Orfeu, que é apenas um mito. Ou como Linos. Ou como as Musas. Ou como Apolo. Deste modo, aprendendo a cada dia, com as horas, com os elementos e com as pessoas- como poeta Edi Simons, cuja profissão é a palavra- certo de que o mito e, pois, a poesia governo o mundo e cria a história […] (Os Peãs)

Ademais, Mourão também se afasta daquela concepção que vê o poeta como um mero artífice das palavras e das combinações léxicas. Ao contrário, ele sustenta que “desde os princípios dos tempos sabemos que o poeta é o vidente, o vate”.


Ainda que a biografia de Mourão seja nebulosa em diversos momentos, ele foi um pensador que tratou de divulgar suas crenças e visão de mundo fora dos domínios do poema. Assim, destacam-se os seguintes livros de prosa e teoria publicados durante sua profícua carreira: O Valete de Espadas (Romance, 1960), Frei e Chile num continente ocupado (Ensaio sociológico e político, 1966), Piero dela Francesca ou As Vizinhas Chilenas (Contos, 1979), Invenção do Saber (Ensaios culturais, 1990) e O Bêbado de Deus (Hagiografia, 2001).


Além de poeta e pensador, GMM também exerceu o ofício de tradutor e verteu para o português: alguns poemas de Mao Tsé Tung, Leopoldo Marechal, Anacreonte, São Boaventura, Rilke, Nezahualcóyotl, sem contar outros poetas menores gregos e latinos.


O zênite da obra gerardiana, no entanto, é o livro Os Peãs. Trata-se, na verdade, de uma trilogia formada pelos seguintes volumes: O País dos Mourões (1963), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977). Embora os textos estejam separados temporalmente por um longo hiato, é possível encontrar no tríptico um elo temático que entrelaça a composição dos poemas: a aparição das deidades gregas, em formas não canônicas e miscigenadas com as potestades cristãs, na vida sertaneja. Alguns detalhes biobibliográficos, como os chama o próprio autor, cercam a composição do poema: três anos depois de ter lançado País dos Mourões, “primeiro volume da trilogia denominada OI PAIANES (em grego, por motivos óbvios) isto é, OS PEÃS, Gerardo visita a Grécia e tem uma “noite de exaltação poética no templo de Poseidon” e depois parte para Delfos, “onde lhe vêm os primeiros versos de Rastro de Apolo”. O relato dá a entender que a atmosfera grega teve elevada influência no modo como os versos sobre Apolo foram compostos:


Por isso Pallas invoco—Palas Athenaia e Afrodite clamo—Afrodite e Zeus e Poseidon e Hermes Trismegisto e Afrodite clamo—Afrodite—e ao seu nome estremecem frementes a pele e o corpo dos machos e das fêmeas: da concha de seus lábios com seus olhos verdes ergue-se Afrodite os mesmos ombros de cabelos molhados pelo mar da Jônia na concha de Poseidon (Os Peãs)

A fervorosa receptividade que Os Peãs experimentou entre intelectuais, poetas e jornalistas especializados, contrasta com o quase anonimato do livro junto ao grande público. Esse fato reforça uma ideia de que Gerardo Mello Mourão, por conta das conjunturas de sua época, é uma espécie de “poeta para poetas”. Ao contrário de outros autores que gozaram de boa receptividade popular (Casimiro de Abreu, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Adélia Prado), GMM não tem nenhum verso vertido para canções ou celebrado em frases repercutidas pelo senso comum. Um espectro sempre rondou a poesia de Gerardo Mello Mourão: a fama de ser um poeta críptico e obscuro. Ao falar do próprio poema, o autor menciona o seu “labirinto de Gerardo”.


Outro elemento que, de alguma forma, parece ter contribuído para a impopularidade de Gerardo Mello Mourão é sua filiação temporária ao Integralismo. Foi Alceu Amoroso Lima quem convidou Mourão para conhecer a chamada “Ação Integralista Brasileira”. A “Ação” era uma organização de cunho político e cultural, criada como uma seção paralela da “Sociedade de Estudos Políticos”, livremente inspirada no fascismo italiano. A AIB tinha como mentor o escritor Plínio Salgado que organizou a assim denominada “doutrina integralista”. A doutrina era baseada em valores religiosos e morais e em um ideal nacionalista que estava sintetizado no lema: “Deus, Pátria e Família”. Durante os anos de sua existência, o movimento, de forte tendência anticomunista, abrigou diversos intelectuais importantes do Brasil: Gustavo Barroso, Miguel Reale, San Thiago Dantas, Câmara Cascudo, Adonias Filho, Dom Hélder Câmara, Ernani Silva Bruno, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, José Lins do Rego, Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt e Vinícius de Moraes. Não havia nada de esdrúxulo ou incomum, portanto, na filiação de GMM ao movimento naquele momento, dado que a Ação Integralista também funcionava como uma espécie de centro de encontro de artistas e intelectuais de diversas orientações teóricas.


Com o advento do Estado Novo, entretanto, diversos personagens ligados ao Integralismo foram perseguidos ou encarcerados. Gerardo Mello Mourão, segundo ele mesmo conta, foi “preso 18 vezes”. Além disso, o poeta cearense também esteve envolvido em diversas acusações de espionagem e ilações sobre uma suposta participação envolvendo os nazistas. Certamente, o vulto desses envolvimentos está relacionado ao espanto de Nelson Rodrigues, publicado em 1969 e anterior ao lançamento das obras magnas de Mourão, sobre “um dos silêncios mais feios e mais vis da nossa vida literária” que é o “que se faz sobre contra Gerardo Mello Mourão”. Curiosamente, GMM também foi preso durante o regime militar que apeou o golpe em 1964 e dessa vez por acusações de envolvimento com comunistas. Gerardo, aliás, foi amigo próximo de diversas figuras importantes da esquerda brasileira. Como é possível notar, o poeta cearense sempre foi uma figura bastante complexa em todos os cenários onde atuou.


No que diz respeito às dificuldades especificamente “técnicas” na leitura da poesia de Gerardo Mello Mourão, a barreira inicial só pode ser superada caso sejam levados em conta os seguintes fatores: a) o cálculo erudito do poeta e seu diálogo com a tradição que o antecede e sustenta, b) as homologias estabelecidas em virtudes da linguagem analógica do poema, c) a abertura poética para o elemento mântico/extático.


No caso de Os Peãs há, entretanto, um elemento de dificuldade adicional que se soma aos já arrolados: em seus versos, GMM mescla elementos formais da poesia popular e oral com momentos de entonação épica e artifícios da poesia moderna. Sendo assim, o leitor, e todo aquele que se debruça sobre a obra, precisa conseguir transitar nesses universos linguísticos para poder vislumbrar a agudeza com a qual Mourão compõe seu painel poético.


Junto ao teu esquife debruçados morta- já nada te perguntaremos decifrada e fatal em teu sarcófago: sobre o teu lábio agora as chaves são de cinza e do mistério morto o pulso nunca tomaremos: fora belo rasgar os vidros de amanhã ao sopro de diamante dos oráculos (Os Peãs)

À voz principal que deslinda os versos sobre Apolo, Gerardo mescla alguns tipos específicos e fixos de composição poética e prosaica. Além da nênia para a Sibila, há um canto fúnebre para Francisco, único irmão do poeta que morreu aos oito anos de idade, trechos inteiros retirados das memórias de Alexandre Mourão, frases colhidas na Ciropedia de Xenofonte, motes extraídos do poeta folclórico Juvenal Galeno, paráfrases de Castro Alves (originalmente: “Vem! formosa mulher — camélia pálida/Que banharam de pranto as alvoradas./ Minh’alma é a borboleta, que espaneja/O pó das asas lúcidas, douradas…” e recriado por GMM como “vem formosa mulher, camélia pálida que banharam de luz as alvoradas”, fragmentos de uma reportagem publicada no Jornal do Brasil sobre a descida no homem na lua…


De inspiração poundiana e holderliana, a dicção de Os Peãs entremeia, em um complexo arcabouço de bricolagens, elementos da poesia moderna, dos épicos e dos cantadores do sertão. Nesse sentido, trata-se de obra que bebe diretamente na fonte romântica, na medida em que subverte, desconstrói e recompõe a forma rígida do gênero literário clássico.


Por fim, poderíamos dizer, no plano da mitopoética, que é preciso ler os versos de Gerardo Mello Mourão levando em conta a máxima enunciada por Dante na Divina Comédia: “O voi ch’avette li ‘ntelletti sani, /mirate la dottrina che s’asconde/sotto ‘l velame delli versi strani” (Inferno, IX, 61-63).


Alexandre Sugamosto

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Excertos de Os Peãs


In illo tempore- 1549 floresciam os machos no país dos Mourões e o Padre Manuel da Nóbrega escrevia ao Rei de Portugal: “mandassem órfãs ou mesmo mulheres erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa” nem se pecava além do equinócio: Deus é grande, mas o mato é maior (MOURÃO, 1986, p. 85)


§


E engole minhas âncoras abaixamos o mastro um côvado pusemos-lhe umas emmes e com arrataduras o corregemos o melhor que podemos e gastamos todo dia em correger o mastro- mas onde o sítio do desejo? (MOURÃO, 1986, p. 174)


§


Junto ao teu esquife debruçados morta- já nada te perguntaremos decifrada e fatal em teu sarcófago: sobre o teu lábio agora as chaves são de cinza e do mistério morto o pulso nunca tomaremos: fora belo rasgar os vidros de amanhã ao sopro de diamante dos oráculos. (MOURÃO, 1986, p.49)


§


Mas teço o pano pastoreio a cabra e forjo o ferro e planto a cana e camponês e obreiro degolo o conde nas auroras de outubro ego poeta o conde degolado à beira de seu abismo: depois com o sopro dos meus pulmões encho de ar os foles de couro e malho a brasa dos metais e produzo as estrelas na oficina onde canto o meu próprio motim e meu próprio massacre…” (MOURÃO, 1986, p. 377)


§


Há cantadores famosos nas feiras do Cariri Jacó Alves Passarinho de Mutamba, Aracati, há Romano de Mãe d’Água, Sinfrônio de Jaboti,

Azulão em Pernambuco, e Inácio da Catingueira, Serrador, Cego Aderaldo, e mais Anselmo Vieira que foi o melhor de todos por ser filho da Ipueiras.

Na viola e na rabeca eu também sou cantador, mas somos pobres mortais, eu, Anselmo ou Serrador, não vamos desafiar Apolo, Nosso Senhor (MOURÃO, 1986, p. 333)


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REFERÊNCIAS


MOURÃO, Gerardo Mello. “Entrevista com o Sr. Gerardo Mello Mourão”. 2001. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/a-camara/documentos-e pesquisa/arquivo/depoimentos/Memoria%20Politica/Depoimentos/gerardo-mello-mourao/texto>. Acesso em: 05 maio 2019.

MOURÃO, Gerardo Mello. Os Peãs. Rio de Janeiro: Record: Rio Arte, 1986

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