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A u-topia identitária sem lugar

Identitários adoram acusar os outros de "românticos" e "idealistas". Toda vez que alguém afirma que o Brasil se formou com base na mestiçagem [cultural, linguística, de hábitos, costumes, etc], os identitários rebatem, alegando se tratar de visão "romântica" - como se quem fizesse tal afirmação estivesse necessariamente idealizando as relações sociais.



Curiosamente pode-se dizer o contrário: os identitários é que são, literalmente, u-tópicos[1]. O identitarismo é uma corrente de opinião [2] que partilha de uma visão essencialista do mundo. Quer dizer, entificam o ser das coisas [de um objeto de estudo] e o aplicam automaticamente em fatos históricos. Assim, cria-se um artifício para essencializar e hipostasiar sempre e invariavelmente um dos lados das lutas históricas, ignorando-se a contradição e a complexidade de cada fenômeno dentro de suas particularidades e contexto. Identitários odeiam a ambivalência e complexidade do mundo. Se fossem geólogos, ignorariam por completos todas as camadas mais profundas da formação geológica da Terra, em uma atitude de criação ex nihilo. Ignoram a lição segundo a qual "não existem sociedades essencialmente boas nem sociedades essencialmente más" [Claude Levi-Strauss].


Assim afirmam, sem matização nem nuances, que mulheres sempre foram oprimidas em nossa sociedade e ponto final [ignorando-se a importância da participação feminina, por exemplo, na nossa Independência, que contou com colaboração de Joana Angélica de Jesus, Jovita Feitosa etc]; da mesma forma, afirmam, sem mais, que o papel histórico dos indígenas na formação do Brasil resumia-se a serem apenas passivamente capturados por portugueses [ignorando que os diferentes grupos indígenas também tinham seus interesses, e que, entre os Tupinambá, isso já acontecia antes da chegada dos portugueses, como lembra mesmo um Florestan Fernandes, em A Organização Social dos Tupinambá ] [3]; afirmam, ainda,, sem mais, que o papel dos negros na História do Brasil era apenas o de ser escravizado ou a isso resistir [ignorando a relativa mobilidade social de escravos no decorrer do século XIX no Brasil em comparação a outras experiências históricas, como demonstra o historiador Manolo Florentino] [4], ou ainda, em outros momentos, afirmam que a abolição da escravatura teria sido fruto apenas da luta dos escravos [e evidentemente tal luta existiu e teve um grande papel] e não uma conquista que, em certa altura, ganhou eco na própria "sociedade civil" organizada (por assim dizer), inclusive no seio das classes médias.


O essencialismo dos identitários (que ironicamente pretendem ser"anti-essencialistas" se levarmos a sério seu discurso) serve como forma de criar um discurso político supostamente "objetivo" e coeso (por maniqueísta) para fins de mudanças institucionais, que é o que vem acontecendo nas últimas décadas. Como, a priori , todas aquelas afirmações possuem um rastro de sentido verificável no mundo fenomênico [afinal, existe racismo, existe machismo e existe violência], passa-se a mobilizar afetos a partir desse pano de fundo para, em contrapartida, transformá-los em projeto político de poder e até mesmo de reengenharia social [como é o caso do apagamento de identidades intermediárias/mestiças no discurso identitarista]. Aliás, o fato de pretenderem apagar os pardos e mestiços é a prova de que odeiam a ambivalência [5].


Ademais, note-se ainda que o incremento do adjetivo "estrutural" em cada uma daquelas expressões em multiplação brandidas pelos identitários ["racismo estrutural", "machismo estrutural" , "homofobia estrutural" etc - sem contar o "racismo ambiental"] se encaixa no projeto político de, por intermédio das instituições, operar alterações sem o debate popular. O novo ethos identitário, embora invoque "justiça social", no fundo odeia o povão e o Brasil Profundo, sobretudo quando descobrem que ele não é tão afeito assim às suas pautas.

Utopia se origina do prefixo de negação, " u ", e da palavra " topos ", que significa lugar ou terra. Portanto, u-topia é um não-lugar, e um discurso utópico é um que não está em lugar algum.

Por rejeitarem a ambivalência e a contradição inerentes à vida, pode-se dizer muito tranquilamente que os identitários é quem são u-tópicos, em sentido pejorativo.


Notas :


[1] A palavra "utopia", como é sabido, foi um neologismo criado pelo inglês Thomas More, em 1516. Ele juntou dois termos gregos, "ou" (com sentido de negação) e "topos" (lugar - a mesma raiz de palavras como "topografia"). Ou seja, a "utopia" seria um não-lugar, algo que não existe.

[2] Cf. os textos de Tiago Medeiros, disponíveis no portal Disparada - principalmente "Sobre a Ilusão de que o Identitarismo tem Pautas", "Um programa não-identitário", "A opressora pedagogia identitária e sua superação". Tiago Medeiros também é co-autor de um dos capítulos do livro "Compreender Gilberto Freyre", publicado pelas Edições Sol da Pátria e disponível na Loja do Sol da Pátria.

[3] Para uma visão equilibrada do processo histórico do Brasil, frisando, especificamente nessa questão indígena, a escravidão pré-portuguesa, divergindo da leitura economicista de Jacob Gorender, cf. RISERIO, Antônio. Em Busca da Nação . 1 ed. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2020, p. 222 ss.

[4] FLORENTINO, Manolo; PINTO DE GOÉS, José Roberto. Padrões de mobilidade e miscigenação racial no Brasil escravista, Rio de Janeiro, século XIX . Disponível aqui (clique).

[5] Vide a conversa, em live, "Nem tudo é preto no branco - mestiçagem e condição parda" (dezembro de 2023), com Denis Moura.



As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria

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