A realidade histórica do Brasil para Cascudo e Freyre
- Gilmar Bernardo
- 13 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de ago.
É conhecida a ideia segundo a qual Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo teriam modelado um conceito estanque de Brasil, ou seja, homogêneo e fechado, infenso a heranças estrangeiras. Mas ela não procede. É acima de tudo falaciosa. Na verdade, uma leitura honesta e atenciosa de suas respectivas obras nos permite notar o tom de cuidado com que trataram o país ao longo de décadas, não sendo raras expressões de espanto e maravilhamento ante a nossa variedade cultural e étnica.
Ainda que tenham produzido estudos caudalosos sobre a origem e desenvolvimento do Nordeste, tanto Freyre quanto Cascudo jamais se deixaram engessar pelo bairrismo. Seria tolice da parte de autores cujas primeiras experiências perpassam a herança milenar do povo, num diálogo entre o interior e o litoral. Com isso, fixemos brevemente duas obras: Casa Grande & Senzala (Freyre) e Literatura Oral no Brasil (Cascudo).
Já nas primeiras páginas de “Casa Grande”, Freyre aponta a miscigenação de Portugal como fator prático das grandes navegações. Segundo ele, o amolecimento do tipo lusitano, predominantemente acre e enrijecido, só foi possível em virtude do contato com os povos africanos, resultando, a partir daí, uma interessantíssima mescla de traços antagônicos a ferver sob a dinâmica da cultura, corrigindo as instituições, tingindo e espalhando a cor de sua gente nos territórios da península.

Com o Descobrimento do Brasil, o português encontra um novo componente étnico: o sangue indígena; realçado, depois, pelo arrebatamento e a escravização dos povos negros. Por isso, escreve o autor, não é de estranhar que o país ainda se equilibre entre tantos antagonismos, a exemplo da militância racialista, pois a miscibilidade contém expressões que transcendem a praticidade política, tal qual se deu durante a colonização. Mais adiante, afirma que a aclimatabilidade também desempenha um papel determinante nesse processo, uma vez que Portugal e África se assemelham em termos atmosféricos. Dessa primeira adaptação nas terras lusitanas é que advêm a posse e o êxito do europeu na região dos trópicos.
Por sua vez, Câmara Cascudo reconhece o mesmo jogo de forças. Em Literatura Oral no Brasil, o folclorista faz uma interessante distinção entre a literatura falada e escrita: enquanto esta vive agrilhoada aos moldes institucionais e acadêmicos, aquela corre de forma livre no meio do povo, dança nas ruas, praças e terreiros. É sua irmã mais velha; é álacre, espontânea. Mas, ao contrário da expressão falada, que segue sem pleno movimento, a literatura impressa tem a vantagem de fixar determinados estados do discurso e, assim, atingir o status de fonte.

A literatura oral é tão vasta que uma anedota hoje contada pode ter sido proferida por Noé, argumenta o autor. Feito uma pedra que se desmancha e vira poeira na escuridão dos séculos, ela não pode ser explicada à parte de uma dinâmica sempre viva, através da qual se altera e se adapta, modificando convenções relevantes da sociedade, como a culinária e a ritualística do sagrado. Desse modo, o mapeamento de tais convergências — esparsas no espaço e no tempo — torna-se possível a partir do momento em que se estuda a transmissão nas próprias matrizes de difusão: nas feiras livres, nas calçadas, nas praças, enfim, onde quer que o povo manifeste as reminiscências de sua herança milenar.
Muito mais poderia ser mencionado nesse sentido: os estudos do folclorista potiguar sobre a influência moura em nossa formação, a importância dos costumes africanos na cozinha brasileira, ou mesmo a divulgação da poesia inglesa da parte do sociólogo pernambucano. Em suma, o Brasil de Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo é polifônico e harmonioso. E sendo polifonia, admite seus contrastes e variações, razão sine qua non de sua unidade.
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