Jeffrey Sachs, professor da Universidade de Columbia, juntou-se às vozes, nos EUA, que denunciam a política externa de Washington em relação à Ucrânia. Em 21 de fevereiro, ele discursou no Conselho de Segurança das Nações Unidas, para pronunciar-se sobre o artigo de Seymour Hersh (jornalista investigativo ganhador do Prêmio Pulitzer), que acusa os EUA de terem explodido os oleodutos russo-alemãos Nord Stream, em um suposto ato clandestino de sabotagem. Em entrevista à revista New Yorker, Sachs falou sobre sua visão do conflito ucraniano.
O economista pode ser descrito como um membro do Establishment americano, como observa o jornalista Issac Chotiner, do New Yorker, que o entrevistou. Chotiner comenta que, trinta anos atrás, a revista Times descreveu Sachs como provavelmente “o economista mais importante do mundo”. Ele, no entanto, tem sido alvo de fortes críticas dentro dos EUA por defender que as autoridades americanas se engajem em tratativas diplomáticas com a Rússia, visando um plano de paz para, assim, evitar uma guerra nuclear. Essa postura equilibrada parece ser politicamente marginalizada e mal vista nos Estados Unidos.
Ecoando algumas questões também levantadas pelo professor de ciência política da Universidade de Chicago John Mearsheimer e outros realistas políticos, Sachs fala sobre as crescentes tensões russo-americanas nos últimos vinte e cinco anos, desde o momento unipolar pós-1991, momento este que deu a Washington uma perigosa ilusão de poder, mais especificamente, nas suas palavras, a ilusão de poder “fazer praticamente tudo o que julgar por bem fazer, incluindo deslocar os militares para qualquer lugar e na hora que quiser, participando de tratados e rompendo com eles quando bem entender, sem consequências graves”.
Em meados dos anos 1990, já havia vozes críticas dentro do Establishment americano, como era o caso do ex-secretário de Defesa Bill Perry, que foi contra a primeira fase de expansão da OTAN. Curiosamente, mesmo após o bombardeio da Sérvia pela OTAN, o presidente russo Vladimir Putin ofereceu seu apoio aos EUA depois dos ataques terroristas de 11 de setembro (2001) e Sachs argumenta que isso indica a boa vontade que o Kremlin ainda tinha em relação ao Ocidente político.
No início dos anos 2000, Putin também era “pró-europeu” e estava, nas palavras de Sachs, “trabalhando com muita proximidade junto a muitos líderes europeus”. Na verdade, a cooperação Alemanha-Rússia estendeu-se por muito mais tempo, materializando-se nos projetos Nord Stream 1 e 2 (todos agora arruinados). Caso acreditemos em George Robertson, ex-secretário-geral da OTAN (1999-2003), a Rússia chegou a considerar a possibilidade de tornar-se membro da OTAN. Mesmo se essa linha de pensamento nunca tiver ido tão longe, de qualquer forma, em entrevista no ano 2000, concedida ao jornalista da BBC David Frost, Putin declarou: “eu não consigo imaginar meu próprio país isolado da Europa”, acrescentando ainda que “é difícil para mim visualizar a OTAN como um inimigo.”
No entanto, apesar da disposição da Rússia em desenvolver um relacionamento mutuamente benéfico com o Ocidente, a expansão agressiva da OTAN seguiu em frente, havendo ainda sete ampliações extras. Em 2008, o ex-presidente dos EUA, George W. Bush, estava pressionando para que a aliança atlântica se ampliasse até a Geórgia e Ucrânia. O conflito russo-georgiano que se seguiu, em 2008, foi claramente uma resposta a isso.
Nesse contexto de uma escalada de tensões que vêm se acumulando há anos, Sachs vê o verdadeiro início do atual conflito (marcado pela campanha militar da Rússia em fevereiro de 2022) não na anexação da Crimeia em 2014, mas em um evento que ocorreu um pouco antes naquele mesmo ano, a saber, a “participação dos EUA na derrubada do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em fevereiro de 2014”, participação esta exemplificada pelo financiamento dado pelo National Endowment for Democracy e ONGs norte-americanas aos manifestantes mais violentos. Yanukovych havia se comprometido em buscar a neutralidade, o que enfureceu Washington.
Segundo Sachs, no final de 2021, a atual crise poderia ter sido evitada, pois Moscou havia feito três exigências, envolvendo a Crimeia, a implementação dos acordos de Minsk II e a interrupção da expansão da OTAN - todas negadas pelos Estados Unidos da América.
Em meio às guerras de narrativa de hoje, o Ocidente muitas vezes tenta retratar o sistema político russo como uma espécie de autocracia, descrevendo a guerra na Ucrânia como uma decisão pessoal de Vladimir Putin somente. Em sua tese de livre-docência de 2018, o professor de história da Universidade de São Paulo, Angelo de Oliveira Segrillo, descreve Putin como sendo intelectualmente um ocidentalista moderado (ainda que de forma ambígua) e não um eurasianista. O historiador cita como evidência disso a conhecida admiração do presidente russo por Pedro, o Grande .
Na visão de Segrillo, Putin nunca foi um ocidentalista radical como Boris Yeltsin, mas sim um ocidentalista pragmático e moderado, embora seja também um gosudarstvennik, ou seja, alguém que defende um Estado forte, em consonância com a tradição política da Rússia. O professor brasileiro compara, assim, Putin ao líder francês Charles de Gaulle, que muitas vezes se opôs aos EUA e à OTAN não apenas por um “viés antiocidental”, mas sim por estar na posição de quem defende os interesses nacionais dos seu próprio país.
Quer a referida tese seja totalmente exata ou não (coisa que interessa principalmente a biógrafos e historiadores, de qualquer maneira), pode-se, em todo caso, argumentar que, longe de ser fortemente “antiocidental” devido às supostas inclinações pessoais do presidente (como a propaganda ocidental afirma), o Kremlin, na verdade, teve que adotar uma abordagem defensiva e contra-ofensiva em relação ao Ocidente (liderado pelos EUA) diante das várias provocações e incidentes que, nos últimos anos, consistiram em cruzar uma “linha vermelha”, na perspectiva russa.
Considerando o tanto que Washington está flagrantemente sobrecarregado e atuando no limite das suas capacidades de projetar poder enquanto tenta conter simultaneamente duas grandes potências (China e Rússia), só é possível por enquanto especular se interesses privados e obscuros envolvendo as elites políticas americanas podem desempenhar algum papel - e até que ponto - no processo de tomada de decisão referente a tal política, moldando assim, em alguma medida, os objetivos energéticos e geoeconômicos que acompanham os objetivos geopolíticos de Washington.
Independentemente de se concordar ou não com Sachs, Mearsheimer e com as avaliações de muitos outros acerca das causas reais do atual conflito ucraniano, é difícil entender por que clamar pela construção de uma proposta de paz seja algo tão mal recebido pelo Establishment americano hoje.
Texto adaptado e traduzido de https://infobrics.org/post/37868
NOTA DA FRENTE SOL DA PÁTRIA:
Apesar das contendas e atritos, Rússia e Ucrânia são dois países vizinhos com população majoritariamente eslavo-oriental e uma cultura, história e língua fortemente entrelaçadas, sendo que a Ucrânia é um país fortemente bilíngue, com boa parte da sua população falando ucraniano e russo, principalmente ao leste. Desde o colapso da União Soviético, o leste europeu vive uma situação parecida com a da África pós-colonial, com conflitos referentes a fronteiras. Ao mesmo tempo em que o intervencionismo americano e a ampliação da OTAN são certamente uma das principais causas do atual conflito, os poloneses, ucranianos do oeste e outros povos da região também têm historicamente queixas legítimas em relação a Moscou.
No que pesem todas as críticas que podem e até devem ser feitas em relação à decisão da Rússia de invadir a Ucrânia, é importante não acompanhar o noticiário com o espírito de quem torce por um time de futebol. A atual guerra é um desastre humanitário em todos os sentidos. Também é verdade que, longe de ter começado em fevereiro de 2022 (com a invasão russa), o conflito na região da fronteira iniciou-se em 2014 e, nos últimos 8 anos, a população de Donbass tem sido oprimida e bombardeada pelo governo ultranacionalista da Ucrânia - assim como é verdade que o Regimento Azov, parte das forças militares ucranianas é notoriamente neonazista. Porém, a decisão russa de invadir a Ucrânia e bombardear Kiev - ao invés de simplesmente enviar tropas em uma missão de paz restrita à região de Donbass - tem um impacto catastrófico e parece estar relacionada também a vários erros de cálculo. A decisão de redesenhar suas fronteiras pela força, anexando outros territórios, abre um precedente perigosíssimo para outros países e não pode ser abençoada.
Cabe ao Brasil, no espírito de sua tradição diplomática, manter sua neutralidade pragmática e somar esforços juntamente a outros atores, como a Turquia, para que seja confeccionado um plano de paz que diminua o risco de uma guerra mundial e um desastre nuclear.
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