Publicações recentes do sociólogo russo Alexandr Dugin causaram algum espanto - descrevendo como os EUA de Trump buscam anexar o Canadá e projetar poder no continente americano, Dugin aplaude esse retorno da Doutrina Monroe. Alguns comentaristas alegaram que seria uma citação "fora de contexto". O texto abaixo, de André Luiz, esclarece a questão de forma definitiva
Nota do Editor
Há anos, o cientista político russo Alexander Dugin tem mitigado suas teses geopolíticas sobre o papel da Rússia e China no mundo) para adequá-las ao trumpismo e à ascensão chinesa. As reticências de Dugin em relação à nova superpotência (a China) e a sua preferência por um polo geopolítico extremo-oriental centrado no Japão (como defendido por ele em publicações anteriores) tiveram de ser deixadas de lado em seu discurso, por causa da dependência cada vez maior da Rússia em relação a Xi Jinping.
Cumpre lembrar que, em contraste, o pensador russo defendia, na sua obra geopolítica mais famosa, publicada em 1997, o seguinte:
"No Novo Império, o eixo oriental deve ser Moscou-Tóquio. Este é um imperativo categórico do Leste, o componente asiático do eurasianismo. É em torno deste eixo que os princípios básicos da política da Eurásia para a Ásia devem tomar forma. O Japão, sendo o ponto mais setentrional entre as ilhas do Pacífico, está localizado em um ponto geográfico excepcionalmente vantajoso para a implementação de uma expansão política, estratégica e econômica rumo ao sul" (Dugin, "Foundations of Geopolitics". Parte 4 – Capítulo 4).
Também dizia, na mesma obra, que
"A Rússia é o 'Eixo da História', porque a 'civilização' se revolve ao seu redor (....). Rússia é uma estrutura territorial independente, cuja segurança e soberania é idêntica à soberania e segurança do continente inteiro. Isto não pode ser dito de nenhum outro poder eurasiano, nem da China, nem da Alemanha, nem da França, nem da Índia. (...) Só a Rússia pode falar pela Heartland com completo fundamento geopolítico. Somente seus interesses estratégicos são não apenas similares aos interesses continentais, mas estritamente idênticos a eles" [Dugin, "Foundations of Geopolitics". Parte 3 – Capítulo 1]
Via, além disso, a China como um perigo - sobre isto, leia mais aqui. Sobre como tais ideias de Dugin nao ficaram na década de 1990 (continuando em "Teoria do Mundo Multipolar", Lisboa, 2012; "Geopolítica do Mundo Multipolar", Curitiba, 2012; "Eurasian Mission", Londres, 2014; "The Last War of the World Island. The Geopolitics of Contemporary Russia", Londres, 2015 e "The Rise of the Fourth Political Theory", Londres, 2017) vide também este texto.
Já a primeira eleição de Trump forçou uma modificação radical em sua Quarta Teoria Política, que agora desvinculava um suposto "Liberalismo 1.0", representado pelas novas forças hegemônicas no Partido Republicano, de um "Liberalismo 2.0", que ele clamava ser ''inimigo de qualquer liberdade'' e que identificava com o Partido Democrata na figura de Biden.
Nos últimos dias, Dugin deu um passo além. Depois de vociferar por anos que o Ocidente era não só uma civilização de trevas mas o próprio Anticristo em marcha, o ideólogo agora cindiu o conceito, a fim de acomodar a aliança Trump/Musk. O russo escreveu em sua conta do X (antigo Twitter), o seguinte:
"De um ponto de vista russo, parece [existir] algo como o "Ocidente coletivo". O comportamento do Ocidente (EUA, UE, OTANlândia) durante a época de Obama, neocons e Biden, e a maioria dos líderes da União Europeia confirmam isto. Mas agora a figura mudou drasticamente. Existe o Ocidente e o Ocidente. O Ocidente número 1 é o do monstro globalista liberal. Mas surgiu o Ocidente número 2. O Ocidente-MAGA. Há, portanto, duas entidades, não somente uma. E assim o termo "Ocidente" não é mais correto. Ocidente-MAGA vs Ocidente-Monstro. Mas este monstro tem de ter outro nome. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz são partes do monstro, mas apenas órgãos, apenas sua interface. As estruturas de Soros são seu sistema nervoso. Mas há algo ainda mais sinistro e horrível por trás da cortina. Algo que mantém unidos todos os elementos do Ocidente-Monstro. E tem tem de ter seu próprio nome" (Dugin, 2025. Fonte:<https://x.com/AGDugin/status/1876897209611944323>).
Obs: MAGA é a sigla "Make America Great Again", slogan do trumpismo (algo como "Façamos com que a América volte a ser grandiosa")
No original, em inglês:
"From Russian point of view it seemed something like “collective West”. Behaviour of the West (US, EU, Natoland) during Obama, neocons, Biden epoch and most of EU leaders confirmed that. But now whole picture is drastically changed.There is the West and the West. West number one is that of globalist liberal monster. But there appears West number two. MAGA-West.Hence the are two identity not just one. So the name “West” is not correct one any more. MAGA-West vs Monster-West. But this monster should have another name. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz are parts of monster but just organs, just interface. Structures of Soros is nervous system. But there should be something more sinister and horrible behind the curtain. Something that holds all the elements of Monster-West together. It has to have proper name."
Fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876897209611944323]
Desse modo, o movimento trumpista [Make America Great Again] e Ellon Musk já não podem mais ser considerados como a civilização do Anticristo, para Dugin. Trata-se, agora, segundo ele, de um Ocidente em guerra contra o próprio Anticristo, o Monstro sem nome de Dugin. As teses do filósofo se aproximam, assim, da percepção defendida por Olavo de Carvalho há cerca de vinte anos. O brasileiro via os EUA como uma trincheira de guerra cultural e também apostava no imperialismo ianque como salvaguarda do "Ocidente verdadeiro". Dugin expôs ainda aquilo que ele pensa ser a natureza do suposto ''Ocidente-MAGA":
"As políticas do MAGA no cenário internacional tal como ganham forma exatamente agora na campanha de Musk contra o governantes globalistas na União Europeia confirmam objetivamente a criação de uma ordem mundial multipolar. Claro que a ideia é reorganizar a hegemonia ocidental em uma base diferente. Mas desta a vez a base é a identidade ocidental -- com os EUA no centro, e Europa e Austrália como satélites. O núcleo da civilização branca moderna, majoritariamente cristã, desenvolvida tecnologicamente. Todo o restante é periferia de menor importância. A Rússia é esquecida (não é mais o inimigo número 1). A Índia substitui a China. A China, o mundo islâmico, a África e a América Latina são uma dor de cabeça; devem ser neutralizadas de algum modo, reduzidas a seus âmbitos históricos. A imigração no Ocidente deveria ser regulada e controlada com assimilação e integração a partir da aceitação da identidade ocidental. O Ocidente para os ocidentais e aqueles que sinceramente partilham de seus valores. Esta estratégia se opõe quase em tudo aos liberais e aos globalistas. Ela leva, talvez a despeito de seus arquitetos e construtores, à multipolaridade -- os não ocidentais começam a reorganizar suas próprias civilizações. O trumpismo em Relações Internacionais é a reorganização da hegemonia ocidental com fundamento no liberalismo de direita e na identidade ocidental. Mas a preocupação principal é a América, a doutrina Monroe, a expansão meridiana e a consolidação da Europa inscrita na zona direta de influência americana. É a nova versão do realismo ofensivo, um tipo de imperialismo americano. Objetivamente, facilita a formação de outros polos civilizacionais que não estão incluídos no núcleo ocidental. Algo como o sugerido por Huntington." (Dugin, "The trumpism in IR is reorganisation of Western hegemony", 2025).
O texto acima também foi publicado por Dugin, em pedaços, no X:


Apesar do contraste retórico, em termos geopolíticos, a abordagem acima é condizente com algumas das alternativas construídas por Dugin em suas publicações geopolíticas mais recentes. No livro "Eurasian Mission" [2014], o ideólogo russo já mostrava seu apreço por esta solução:
"Os planos eurasianos para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição, três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões (zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos, mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo eurasiano propõe que sejam quatro” (Dugin, Eurasian Mission, Parte 1, Capítulo 3)

Seguindo a cronoologia, em 2017, no primeiro ano do primeiro mandato de Trump, Alexander Dugin escrevia em "Rise of the Fourth Polytical Theory" (livro que é uma continuação da "Quarta Teoria Política"):
"Se três “Grandes Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”, então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global, terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, sua influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação nacional da dominação global americana” (Dugin, Rise of the Fourth Polytical Theory, capítulo 4).
A "expansão meridiana" como a afirmação de um império americano mais restrito e calcado na Doutrina Monroe e na influência na "Europa atlantista'' é uma agenda inscrita na militância de Dugin há pelo menos dez anos. Seria possível voltar até mais no tempo para flagrá-la em sua proposta de ''mundo quadripolar".
Daí se entende a comemoração efusiva do intelectual russo com a vitória de Trump no fim do ano passado. Em 6 de novembro de 2024, Dugin declarava que o resultado das eleições norte-americanas era a vitória final da multipolaridade, o que não deixa de ser irônico para um evoliano anti-democrata que identificava a América com os infernos:
"Então vencemos. Isso é decisivo. O mundo jamais será o mesmo de novo. Os globalistas perderam seu combate final. O futuro finalmente está aberto. Estou realmente feliz" (Dugin, 2024. Fonte: <https://x.com/AGDugin/status/1854136340184490282>).
No original:
"So we have won. That is decisive. The world will be never ever like before. Globalists have lost their final combat. The future is finally open. I am really happy".

Mais recentemente, Dugin repetiu, mais uma vez, que o novo mundo multipolar de potências imperialistas coloca fim à era dos Estados Nacionais. É verdade, diz ele, que distintas civilizações têm o direito às suas próprias articulações culturais e identidades, mas a soberania de fato, para Dugin, pertence só aos polos geopolíticos. Em 7 de janeiro, o russo publicava no X:
"A Ucrânia está totalmente esquecida agora. O mundo em que estamos entrando agora não reconhece nem o Canadá nem a Ucrânia. O mundo multipolar, só existem verdadeiramente grandes poderes soberanos (Dugin, 2025. Fonte: <https://x.com/AGDugin/status/1876753078583500885>).

Para além do sabor olavético e das semelhanças com a perspectiva do ex-chanceler Ernesto Araújo, a perspectiva duginista tem consequências óbvias para os países que estão fora da ''festa'' das grandes potências militares. Eles deixam de ter, Brasil incluído, ''direito'' ao reconhecimento de sua soberania nacional. Na multipolaridade de Dugin, a Ucrânia e o Canadá só tem direito à existência como quintal de alguma grande potência. Para os demais povos americanos, as propostas de Dugin representam não só Doutrina Monroe, mas também Big Stick (o "grande porrete" americano). Para ele não há problema algum, é apenas a consequência exata de sua agenda, em que a Rússia se vê livre da pressão atlantista americana e com carta branca para reconstruir seu espaço geopolítico imediato.
Como escrevi ao longo dos últimos três anos, a agenda duginista é uma tentativa de recuperar o mundo anterior à Primeira Guerra Mundial. Quando o ideólogo fala de combater o ''liberalismo 2.0" e o "Ocidente-Monstro", pretende apenas recuperar a ordem liberal moderna dos grandes impérios oitocentistas que competiam sem freios pelo domínio dos demais povos.

Está tudo bem, para Dugin, desde que seja tudo feito em nome da "Tradição" e não do ''progressismo''. Um mundo dessa maneira seria uma derrota para o globalismo, avisa o russo. Mas é um mundo satisfatório para o Brasil e demais nações do Sul Global? A multipolaridade de Dugin é liberdade para o Império russo, mas, para a América Latina, é a nova forma de um velho aguilhão.




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