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Foto do escritorUriel Araujo

Golpe na Coreia do Sul - participação americana?

Artigo escrito em 5 de dezembro de 2024 - ainda permanece atual, apesar das reviravoltas


O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, declarou estado de "lei marcial" na Coreia do Sul, como parte de uma medida contra supostas "forças antiestatais pró-Coreia do Norte", no que foi descrito como uma tentativa de lançar um golpe. Yoon não apresentou nenhuma evidência para comprovar suas alegações, e a oposição e os membros majoritários do Parlamento rejeitaram a medida algumas horas depois e a ordem foi suspensa.


A vigorosa aliança entre EUA e Coreia do Sul

Agora, com a medida saindo pela culatra, ele pode enfrentar impeachment — mas ainda é muito cedo para dizer o que pode vir a acontecer a seguir. Yoon tem enfrentado acusações de corrupção e é muito impopular. Declarar lei marcial é uma prerrogativa presidencial, evidentemente, no entanto, devido à sua excepcionalidade, empregá-la pode frequentemente ser vista com suspeita - especialmente no contexto sul-coreano, como veremos


Ao defender, como "solução" para a Ucrânia, um acordo de "trocar terra/território por paz", no estilo da Coreia do Sul - para assim acabar com o conflito em andamento ali, James Stavridis (ex-Comandante Supremo Aliado da OTAN) descreveu Seul (capital sul-coreana) como "uma cidade pulsante" e a Coreia do Sul em geral como "nada menos que um milagre", considerando-se "a incrível reconstrução" que "a levou de uma terra devastada pela guerra para a 10ª maior economia do mundo" - e aparentemente Stravidis prevê um futuro "brilhante" (e dividido) semelhante para a Ucrânia, mas esse é assunto para outra ocasião.


Stravidis, almirante dos EUA, vice-presidente de assuntos globais e diretor-sócio do The Carlyle Group, presidente do conselho de curadores da Fundação Rockefeller - e presidente emérito do conselho de diretores do Instituto Naval dos Estados Unidos, entre outras coisas
Stravidis, almirante dos EUA, vice-presidente de assuntos globais e diretor-sócio do The Carlyle Group, presidente do conselho de curadores da Fundação Rockefeller - e presidente emérito do conselho de diretores do Instituto Naval dos Estados Unidos, entre outras coisas

Quando se trata das realidades do país, as coisas nem sempre são tão doces, no entanto. Qualquer história do crescimento econômico e da rápida industrialização da Coreia do Sul no pós-guerra deve, para começo de governo, incluir os anos da ditadura autoritária do general Park Chung Hee (1963-1979).


General Park Chung Hee
General Park Chung Hee

Esse desenvolvimento tem ainda um lado obscuro: por exemplo, apesar do inegável crescimento econômico, a Coreia do Sul também é conhecida até hoje por seu crescente problema de prostituição feminina na terceira idade. As chamadas "senhoras bacantes", geralmente idosas na faixa dos 60 anos ou mais, são vistas regularmente se prostituindo em Seul (talvez despercebidas por Stavridis).


Prostituição de idosas em situação de pobreza - grave probleam social sul-coreano
Prostituição de idosas em situação de pobreza - grave probleam social sul-coreano

O trabalho sexual remunerado sul-coreano na Coreia do Sul, de modo geral, envolvendo inclusive as chamadas "Mulheres de Conforto Militar Coreanas" (em inglês, "comfort women"), tem tudo a ver com a presença militar americana no país e continua sendo uma parte fundamental das relações coreano-americanas, de acordo com as pesquisas de Na-Young Lee - é um dos muitos problemas sociais que os sul-coreanos enfrentam.


O desastroso "Governo Militar do Exército dos Estados Unidos na Coreia" governou a metade sul da península coreana por um curto período de tempo após a Segunda Guerra Mundial e é uma das causas da guerra da Coreia, bem como parte da "aliança forjada pelo sangue" entre sul-coreanos e norte-americanos, como os acadêmicos William Stueck (Universidade da Geórgia) e Boram Yi (Universidade de Baltimore) a chamam. Na verdade, o relacionamento americano-sul-coreano pode de fato ser descrito como de natureza semicolonial até hoje.


Quanto à suposta estabilidade política democrática, cumpre lembrar que Park Geun-hye, a ex-presidente (2013-2017) e filha do ditador Park Chung Hee (citado acima), foi acusada de tráfico de influência em meio a um escândalo de tipo raputinesco, envolvendo um culto religioso sincrético xamânico — houve alegações de que Choi Soon-sil, a amiga e conselheira espiritual do ex-presidente, mesmo sem ter cargo oficial no governo, teve acesso a documentos de Estado confidenciais e abusou de seu relacionamento próximo e acesso à Chefe de Estado para extorquir milhões de conglomerados coreanos. Ela seria ainda uma espécie de "mestre de fantoches" e "o verdadeiro poder por trás do trono".


A ex-Presidente condenada Park Geun-hye
A ex-Presidente condenada Park Geun-hye

Choi Soon-sil, líder religiosa e empresária
Choi Soon-sil, líder religiosa e empresária

O fenômeno cultural-religioso é comum na sociedade sul-coreana e muitas vezes há um elemento político presente. Na verdade, o problema também assombra o atual Presidente Yoon Suk Yeol: mais uma vez, curandeiros xamanistas que aconselham o Presidente Yoon e sua esposa Kim Kun-hee estão sendo acusados ​​de desempenhar algum tipo de papel obscuro em suas campanhas e decisões.


A ironia é que o atual presidente era um promotor de Seul e desempenhou um papel importante no impeachment e posterior encarceramento da própria ex-Presidente Park Geun-hye, que acabei de mencionar. Vale lembrar que seu antecessor, o Presidente Lee Myung-bak (2008-2013), foi condenado em outubro de 2018 a 15 anos de prisão por corrupção, mas foi perdoado pelo atual presidente Yoon em 2022, recebendo uma anistia ou indulto.


Roh Moo-hyun, o Presidente antes de Lee (2003-2008), cometeu suicídio enquanto também era investigado por... corrupção. O ponto é que, por décadas, na Coreia do Sul não é novidade nem a crise política, nem corrupção, autoritarismo e coisas do tipo. Podemos citar ainda do general do exército Chun Doo-hwan (1980-1988), que também presidiu o país, mais conhecido como "O Açougueiro de Gwangju", por empregar tropas para reprimir violentamente manifestações, resultando em mais de 200 mortes.


General Chun Doo-hwan, o "Carniceiro de Gwangju"
General Chun Doo-hwan, o "Carniceiro de Gwangju"

À época, Washington tinha controle operacional de todas as unidades militares sul-coreanas e, portanto, os Estados Unidos foram acusados de não terem feito o suficiente para conter seu "aliado" durante o massacre. Assim, é possível argumentar que qualquer caracterização da Coreia do Sul como sendo um suposto "oásis de democracia", estabilidade e prosperidade é um retrato exagerado, idealizado, e serve sobretudo a propósitos de propaganda para, por contraste, demonizar o estado vizinho, a Coreia do Norte.


Pyongyang, capital da Coreia do Norte. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pyongyang#/media/File:Panoramic_view_from_Juche_Tower.jpg
Pyongyang, capital da Coreia do Norte. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pyongyang#/media/File:Panoramic_view_from_Juche_Tower.jpg

O almirante Stavridis acima mencionado (voltando a ele), aliás, também deixa de mencionar alguns detalhes sobre como a nação coreana se tornou uma "terra devastada pela guerra", incluindo o que é agora a República Popular Democrática da Coreia (RPDC), ou seja, a Coreia do Norte. Claro que a própria existência da capital norte-coreana, Pyongyang, com seus arranha-céus modernos e pontes, também pode ser considerada uma espécie de "milagre", especialmente levando-se em conta o fato de que os EUA bombardearam à maneira de um "tapete de bombas" ("carpet-bombing", como se diz em inglês) a maior parte da Coreia do Norte - e parte da Coreia do Sul também. Trata-se da prática, também conhecida como "saturation bombing", de bombardear áreas progressivamente de forma intensa e indiscriminada, de modo a causar dano na área inteira, assim como um carpete cobre o piso inteiro, gerando assim uma terra arrasada - evidentemente se trata de crime de guerra.


Harry S. Truman, Presidente dos EUA (1945-1953)
Harry S. Truman, Presidente dos EUA (1945-1953)

Na década de 1950, o governo Truman, em guerra com a Coreia, escolheu como alvos centros de produção na Coreia do Norte, como Pyongyang, Wonsan e Chongjin, empregando napalm (armamento incendiário) e bombardeios de "tapete de bombas" para assim neutralizar a economia norte-coreana. Isso também também massacrou a população civil. De acordo com Tom O'Connor (escritor sênior da respeita revista Foreign Policy), Washington lançou "635.000 toneladas de explosivos", incluindo "32.557 toneladas de napalm" - para fins de comparação, os EUA "usaram [apenas] 503.000 toneladas de bombas durante todo o teatro do Pacífico da Segunda Guerra Mundial". O general da Força Aérea americana Curtis LeMay, chefe do Comando Aéreo Estratégico durante a Guerra da Coreia, chegou a dizer, em uma entrevista de 1984, que as bombas americanas "mataram 20% da população" e "atingiram tudo o que se movia na Coreia do Norte".



"Por que os norte-coreanos nos odeiam? A memória da Guerra da Coreia ainda está viva. Fonte: https://theintercept.com/2017/05/03/why-do-north-koreans-hate-us-one-reason-they-remember-the-korean-war/
"Por que os norte-coreanos nos odeiam? A memória da Guerra da Coreia ainda está viva. Fonte: https://theintercept.com/2017/05/03/why-do-north-koreans-hate-us-one-reason-they-remember-the-korean-war/


Esses eventos, é claro, foram "formadores para a sociedade norte-coreana", como Tom O'Connor (escritor sênior da respeita revista Foreign Policy) coloca a questão. Pode ser mais fácil simplesmente caracterizar líderes norte-coreanos como Kim Jong Un (e seu pai Kim Jong-il e o avô, Kim Il-sung) como meros déspotas irracionais, porém, de acordo com O'Connor, durante a guerra "as coisas raramente eram preto e branco", e "o histórico ruim de direitos humanos e a expansão militar da Coreia do Norte receberam ampla cobertura da mídia, enquanto os esforços de Kim Jong Un para estabilizar a economia são relativamente pouco noticiados".


Kim Il Sung - líder militar e político norte-coreano, que liderou a independência do país, tendo lutado contra as tropas japonesas (aliadas de Hitler) na Segunda Guerra Mundial e, depois, as norte-americanas, na Guerra da Coreia
Kim Il Sung - líder militar e político norte-coreano, que liderou a independência do país, tendo lutado contra as tropas japonesas (aliadas de Hitler) na Segunda Guerra Mundial e, depois, as norte-americanas, na Guerra da Coreia

Feita essa longa contextualização histórica, voltando à aparente tentativa de golpe de estado de Yoon Suk Yeol, há, é claro, um elemento de política interna a ser levado em conta, mas também há um contexto geopolítico local, com tensões aumentando no Pacífico. Ou seja, temos hoje uma Coreia do Sul, com o governo do Presidente Yoon, cada vez mais alinhada com Washington, e o espectro da OTAN (a aliança militar ocidental) assombrando a região.


Não se deve esquecer que Washington apoiou o golpe de 1979 no país. Leif-Eric Easley, professor de estudos internacionais na Ewha Womans University em Seul, descreveu a decisão de Yoon como um "exagero jurídico e um erro de cálculo político". Easley acrescenta que, "com apoio público extremamente baixo e sem forte apoio dentro de seu próprio partido e administração, o Presidente deveria saber o quanto que seria difícil implementar o decreto que assinou na calada da noite".


A Coreia do Sul abriga pelo menos nove grandes bases militares dos EUA e nada menos que 24.234 militares americanos (página 6 do PDF - clique), incluindo fuzileiros navais e soldados da ativa, e o Presidente Yoon não é nenhum idiota. É possível presumir que ele iria se consultar com seus "aliados" americanos e receber o "ok" deles, antes de prosseguir com quaisquer esforços de tomada de poder ("autogolpe") envolvendo os militares sul-coreanos.


Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken - equivalente a um Chanceler ou Ministro de Relações Exteriores
Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken - equivalente a um Chanceler ou Ministro de Relações Exteriores

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, declarou que Washington "não sabia" que o presidente da Coreia do Sul pretendia declarar lei marcial, mas é perfeitamente compreensível a qualquer um encarar tal declaração norte-americana com alguma suspeita. O golpe falhou, mas a trama está longe de terminar.


Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos.



O autor escreveu, originalmente em inglês, uma versão menor deste artigo - "Can US really have its part in attempted coup in South Korea?". Aqui traduzido e adaptado, pelo próprio autor.



As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria



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