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Objetivos de Desenvolvimento Sustentável viram arma do Ocidente para garantir sua hegemonia


Muito se fala sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que são parte da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada por todos os membros das Nações Unidas (ONU) em 2015 - e incluem, de forma integrada, tópicos ambientais, sociais e de governança. A sustentabilidade é um conceito central aqui – e também está se tornando cada vez mais um assunto controverso, sendo às vezes associada ao “colonialismo climático”. Pode-se até falar em uma “fadiga" ou "ressaca da sustentabilidade”. Até o presidente do Brasil, Lula da Silva, já acusou a União Europeia (UE) de usar a agenda ambiental para disfarçar iniciativas protecionistas. Dentro do campo nacionalista e desenvolvimentista (especialmente no Sul Global, o antigo Terceiro Mundo), muitas vezes há uma percepção de que todo discurso e agenda ambiental consistem apenas em um véu para encobrir interesses neocolonialistas e nada mais.



Sempre foi um grande desafio conciliar, por um lado, as necessidades de insdustrialização e desenvolvimento nacionais e, por outro lado, a questão ambiental. Trata-se de um equilíbrio complexo, que envolve questões técnicas intrincadas. Os problemas ambientais, seja como for, são questões da maior importância para o futuro (e presente) da humanidade. Não há como negar que os níveis crescentes de poluição e desmatamento, entre outros, precisam ser abordados de forma eficiente. Também é verdade, no entanto, que, ao mesmo tempo, a chamada agenda ambiental tem sido usada como arma pelas grandes potências. É realmente um caso de falso dilema que está em jogo aqui: fatos reais também podem ser usados ​​como propaganda. As florestas em chamas e os rios envenenados (e seus efeitos) são reais, assim como é real a transformação do ambientalismo e da sustentabilidade em arma e é real a hipocrisia vigente a esse respeito.


A lógica desse jogo é bem similar àquela que está por trás da instrumentalização das denúncias relacionadas aos direitos humanos (ou à diversidade e pauta woke, aliás). Por exemplo, existem questões legítimas relacionadas à maneira como a China lida com o extremismo político-religioso e segurança doméstica (um problema transnacional que afeta toda a chamada região eurasiana). Algumas iniciativas chinesas para combater o extremismo islâmico são de fato controversas: os chamados “Centros de Educação e Treinamento Vocacional” são descritos pelos críticos como “campos de concentração”. Seja como for, Washington enfatiza essa pauta (frequentemente de forma hiperbólica e distorcida) enquanto visa envolver nações de maioria muçulmana e suas sociedades civis para conclamar seus líderes a reduzirem o comércio com Pequim, diminuindo assim o fluxo de petróleo para aquela superpotência asiática – o objetivo é, entre outras coisas, fazer com que os países do sul da Ásia bloqueiem projetos de infraestrutura chineses de juros baixos. O irônico é que esses mesmos projetos poderiam contribuir para atingir as metas de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) na região.


A preocupação humanitária americana só pode ser descrita como hipocrisia, sobretudo se levarmos em conta o fato de que os Estados Unidos, como relata a Human Rights Watch (HRW), por mais de duas décadas têm feito uso da chamada “detenção por tempo indeterminado” ou "indefinite detention", e têm aprisionado (sem o devido processo legal) e torturado milhares de adultos e menores de idade (principalmente muçulmanos), que são mantidos em lugares como a Baía de Guantánamo ou em porões (“black sites”) e prisões secretas da CIA (agênca americana de espionagem) espalhadas por mais de 50 países em todo o mundo.


Voltando à questão ambiental, podemos ver, repetidamente, o mesmo tipo de hipocrisia e uso de "dois pesos e duas medidas". Vários projetos africanos na área de energia, como escrevi em 2022, têm, repetidamente sofrido oposição da parte do Ocidente liderado pelos EUA. Em setembro de 2022, por exemplo, o Parlamento da União Europeia (UE) aprovou uma resolução afirmando que o projeto do Oleoduto de Petróleo Bruto da África Oriental (conhecido como EACOP) da Tanzânia e Uganda apresentaria “riscos sociais e ambientais”. O Parlamento Europeu aconselhou, assim, seus estados-membros a não apoiarem (diplomaticamente ou financeiramente) os projetos de petróleo e gás de Uganda. O vice-presidente do Parlamento de Uganda, Thomas Tayebwa, reagiu a isso descrevendo a resolução europeia como o “mais alto nível de neocolonialismo e imperialismo” contra a soberania de Uganda e Tanzânia. É preciso manter em mente que o continente africano inteiro, em 2020, foi responsável por apenas 3,8% das emissões mundiais de CO2 relacionadas a indústria e combustíveis fósseis.



O exemplo mais flagrante de uso das agendas ambientais como arma da parte dos EUA pode ser visto, como escrevi alhures, na própria maneira como essa suporpotência busca atingir a hidrohegemonia por meio de uma série de iniciativas que são articuladas utilizando-se a linguagem dos problemas climáticos. O governo de Biden, assim, exerce pressão sobre o Brasil na questão da Amazônia enquanto, ao mesmo tempo, endossa o Ford F-150, um caminhão elétrico que causa danos ao rio Amazonas (o alumínio usado envenena as águas).


Esse jogo vai além do escopo do "Sul Global", às vezes sendo utilizado como arma pelos Estados Unidos contra seus próprios aliados transatlânticos (que, note-se, também são alvo de uma guerra de subsídios): por exemplo, em 2022, John Kerry, que então era o "Czar do Clima" americano, ou seja, o enviado presidencial especial de Biden para questões climáticas, alertou investidores para não financiarem um projeto de gasoduto da Nigéria e Marrocos que poderia beneficiar a África e também a própria Europa. A maneira como Washington tem instrumentalizado e se beneficiado da crise energética europeia nos últimos anos, a propósito, é fundamental para se entender o conflito atual na Ucrânia. Na verdade, além dos conhecidos objetivos geopolíticos da OTAN (liderada por Washington) relativos a levar a cabo um cerco à Rússia, os interesses americanos geoeconômicos, privados e até mesmo escusos (envolvendo até a família Biden) relacionados a gás, energia e recursos naturais também tiveram um papel importante no desenrolar da crise ucraniana – mas esse é outro assunto.


Gerenciar recursos naturais e acesso à água é um dos grandes desafios do século XXI, e espera-se que várias disputas e conflitos centrados nessas questões venham à tona, tanto em nível intranacional quanto internacional. Infelizmente, também podemos esperar que a retórica ambiental seja cada vez mais usada como instrumento por uma superpotência como os Estados Unidos.


Entretanto, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não são necessariamente “o inimigo”, mesmo da perspectiva do Oriente ou do Sul Global. Hannah McNicol, pesquisadora doutoranda da Universidade de Melbourne, argumenta que a Iniciativa da Nova Rota da Seda da China, na verdade, converge amplamente com os ODS, adotando o "framework" deles. Assim, de acordo com McNicol, “os ODS são materialmente alcançados por meio de políticas econômicas e de infraestrutura da Nova Rota da Seda”.



As discussões sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) geralmente enfatizam o ângulo ambiental (água limpa, energia limpa) ou, às vezes, as questões de gênero; contudo, os ODS abrangem também indústria e a infraestrutura, bem como o combate à pobreza (e disso já não se fala tanto). Ora, não há como atingir nada disso sem uma reindustrialização responsável e consistente – não importa o quanto se fale sobre um suposto mundo “pós-industrial” hoje. Nenhuma nação em desenvolvimento ou emergente deve ter vergonha de buscar o poder industrial, enquanto até mesmo o Ocidente hoje luta para superar um quadro de desindustrialização. É precisamente porque a manufatura/industrialização importa tanto que ela se tornou o alvo de uma guerra econômica – que não raro é formulada usando-se a linguagem da sustentabilidade e das preocupações ambientais. Faz parte do jogo.


Nota do autor: eu escrevi este artigo originalmente em inglês com o título de "Sustainable Development Goals Weaponized by the West to Ensure Its Hegemony". Segue acima uma versão traduzida e adaptada.


Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos.


 

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