O cotismo (ou quotismo) é, hoje, a doença infantil da política pública progressista. Seja qual for o problema ou questão, as cotas (quotas) cristalizaram-se como panaceia ao ponto do progressismo não ter mais outro horizonte senão o da inclusão (para fins de diversidade e representatividade) pela via da política afirmativa de cotas e análogas. Em alguns casos, temos situações em que a lógica cotista esparrama-se para além do paradigma da ação afirmativa.
Cotas para vítimas de violência doméstica - solução?
A aplicação dessa fórmula repetitiva, de fato, pode, às vezes, materializar-se de formas surpreendentes. Veja-se, por exemplo, a redação do Decreto Nº 11.430, de 8 de março de 2023, em vigor (decreto presidencial este que regulamentou a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, isto é, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, estabelecendo cotas para mulheres vítimas de violência doméstica):
Art. 3º Os editais de licitação e os avisos de contratação direta para a contratação de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, nos termos do disposto no inciso XVI do caput do art. 6º da Lei nº 14.133, de 2021, preverão o emprego de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica, em percentual mínimo de oito por cento das vagas.
§ 1º O disposto no caput aplica-se a contratos com quantitativos mínimos de vinte e cinco colaboradores.
§ 2º O percentual mínimo de mão de obra estabelecido no caput deverá ser mantido durante toda a execução contratual.
§ 3º As vagas de que trata o caput:
I - incluem mulheres trans, travestis e outras possibilidades do gênero feminino, nos termos do disposto no art. 5º da Lei nº 11.340, de 2006; e
II - serão destinadas prioritariamente a mulheres pretas e pardas, observada a proporção de pessoas pretas e pardas na unidade da federação onde ocorrer a prestação do serviço, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
§ 4º A indisponibilidade de mão de obra com a qualificação necessária para atendimento do objeto contratual não caracteriza descumprimento do disposto no caput.
(grifos meus)
A norma ao menos prevê a "indisponibilidade de mão de obra com a qualificação necessária" e contempla a questão de percentagem de pretos e pardos em cada Estado ou unidade da federação (mas não em cada município, sendo que pode haver enormes diferenças inter-municipalmente) - mas não contempla os diferentes percentuais de vítimas de violência em cada região, como se a realidade, de Marabá a Balneário Camboriú, fosse a mesma. Note-se, em todo caso, que, pela norma, em havendo vinte e cinco funcionários pelo menos, 8% deles deverão ser mulheres vítimas de violência doméstica (e a norma inclui, igualmente, mulheres cis e travestis e mulheres trans - em sentido ampliado e autodeclarado, suponho). No caso em questão, diferentemente da lógica das ações afirmativas, não se trata, obviamente, de dar representatividade à categoria das mulheres vítimas de violência doméstica, pois se trata, aí, de um grupo que o legislador desejaria que deixasse de existir. Trata-se antes de utilizar a política de quotas para combater o problema. Trata-se então de um caso relativamente atípico, mas que, ainda assim, incorpora a mesma lógica.
Ora, é uma medida louvável adotar políticas que auxiliem mulheres em situação de violência doméstica a quebrar o ciclo da dependência econômica que pode deixá-las prisioneiras de um parceiro agressor. O problema é fixar isso em quotas em lei federal referente a licitações, com impacto em todo o território nacional, sendo que, por exemplo, naturalmente existem variações, estatisticamente, em cada município do Brasil (e não só em cada Estado). Mulheres pobres e miséraveis vítimas de violência doméstica que são brancas são menos prioritárias do que mulheres pretas e pardas em geral? Qual é o público-alvo dessa política pública (se é que podemos chamá-la assim) e por quanto tempo ela se manterá? Quantas "possibilidades do gênero feminino" existem? (aliás, existem, também, múltiplas possibilidades do gênero masculino?) Como se determina ou se atesta a "indisponibilidade de mão de obra com a qualificação necessária"? Qual é exatamente o objetivo da política pública? Como funciona? Como se chegou ao número de 8%? Exige-se apenas a apresentação de Boletim de Ocorrência para comprovar a situação de violência doméstica?
Como ninguém quer ser a favor da violência doméstica, ninguém vai querer fazer essas perguntas e é assim que funciona hoje o debate público progressista e a política pública progressista, que não é mais sequer aquilo que se chamava de "a esquerda", mas é antes o que chamo de "extremo-centro" tornado em novo mainstream, em novo normal: é o centrão social-liberal e neo-liberal progressista. E tudo que estiver fora dele é, por definição, extrema-direita e maldito.
Não é exagero dizer que um decreto desta natureza é quase um incentivo à violência doméstica (ou melhor, à fraude). Basta pensar que uma empresa como a Odebrecht chegou a ter cerca de 30 mil funcionários. Neste caso, para estar em conformidade com a legislação, seria preciso ter, no quadro de funcionários, 2.400 mulheres agredidas - e 2.400 mulheres agredidas que tenham currículo compatível com o cargo ocupado - e isso em um ramo no qual tradicionalmente mulheres são minoritárias. Imagine-se a dificuldade em se encontrar 2.400 mulheres vítimas de violência doméstica com a formação técnica necessária (incluindo-se operadoras de máquinas, mecânicas, analistas, engenheiras etc). In extremis, é quase um "se não apanhou, está fora". A resposta politicamente correta seria de que "não existe trabalho de homem nem trabalho de mulher", mesmo se não for bem assim na realidade. O que se torna necessário fazer, então (e isso é discutido em seminários hoje), é prospectar mulheres com tal perfil para trabalharem numa construtora ou empresa de engenharia e aí surge uma demanda para contratá-las, com aberturas de vagas direcionadas a elas que nem sempre serão preenchidas. Dados de 2023 indicavam que cerca de 3% das mulheres brasileiras já sofreram (em algum momento da vida) violência doméstica - 8% é mais do que o dobro. Abrindo-se tal precedente, por que não abrir também vagas para mulheres vítimas de violência doméstica em vestibulares e concursos públicos? O céu é o limite.
De maneira análoga ao que aconte com as autoidentificações nas famigeradas bancas de cotas raciais (ou mesmo em se tratando de pessoas trans), qualquer preocupação sobre distorções ou sobre a possibilidade de fraude ou má fé é vista como uma insinuação grosseira e maldosa, fascistoide, escrota - afinal, vivemos numa nação onde a declaração falsa do que quer que seja para auferir qualquer possível vantagem é um fenômeno praticamente desconhecido, uma nação onde ninguém mente no currículo em hipótese alguma, um país de anjos...
Mais ainda: o fenômeno da violência doméstica é mais comum em comunidades periféricas. Não se restringe à pobreza, mas a ela está associado: são lares desestruturados, com alcoolismo e mulheres com filhos que não são economicamente independentes e não contam com uma rede de apoio - situação bem diferente da analista de RH ou engenheira que faz um Boletim de Ocorrência na delegacia, procura um imóvel para alugar ou recorre à família, aciona sua advogada, recorre à psicóloga, pede o divórcio. O contraste aqui não é para minimizar o sofrimento das mulheres vítimas de violência doméstica em qualquer classe social, mas para mostrar a falta de clareza quanto ao público-alvo de uma "política pública" (se tanto) que já nasce problemática e, ao mesmo tempo, blindada contra qualquer crítica.
A lógica do cotismo
O Decreto Nº 11.430 parece inusitado, mas ele faz parte de um contexto maior - é a aplicação da lógica cotista hoje hegemônica na política progressista-centrista globalizada.
É assim que, entende-se hoje, num passe de mágica, devem ser resolvidos todos os grandes problemas nacionais: com cotas e cotas. Cotas para mulheres (cis e trans, mesmo se o Ministério das Mulheres não souber dizer quem é mulher ou qual é a definição de "mulher"), cotas para travestis, cotas para ex-presidiários, cotas para asiáticos e judeus quiçá, cotas para obesos, cotas para autistas (abrangendo todo o espectro do transtorno, sem diferenciar), cotas para negros (categoria que ora é sinônimo de preto afrodescendente, ora é sinônimo de "pardo" em geral, mesmo que ninguém saiba quem é pardo ou o que é um "pardo"). Cada nova proposta é um novo "debate", um novo "avanço".
A probabilidade de que surjam cotas para crentes (para evangélicos pentecostais) parece pouco provável, embora seja uma população marginalizada, simplesmente porque essa população, no imaginário maniqueísta progressista, não participa dos grupos entendidos como oprimidos. A possiibldiade de que surjam cotas para caboclos é pequena (mesmo havendo, por exemplo, proporcionalmente mais presidiários pardos do que pretos) porque o Movimento Negro já bateu o martelo de que pardos, caboclos e mestiços devem ser contabilizados como "negros" .
Seja como for, o enfoque excessivo em cotas no serviço público e nas universidades é, em si, elitista. Seu público-alvo é, comparativamente, uma elite universitária. Nesse cenário, não cabe mais qualquer debate estrutural ou sobre a lógica do sistema, sobre os mecanismos perversos que alienam a população e empobrecem as famílias, tributação, reindustrialização, direitos trabalhistas, sobre a reforma (ou federalização) do Ensino Básico, sobre o ensino técnico e educação profissionalizante. São só cotas e cotas, representatividade. Por outro lado, se tal política deixar de ser elitista como é e passar a ser aplicada em todos os níveis da sociedade, o resultado será ainda mais desastroso, pois aí teremos a aplicação universal da mesma lógica cotista equivocada. Não é difícil imaginar, num futuro não muito distante, uma norma determinando algum tipo de cota em todas as empresas no território nacional, por exemplo. O potencial para injustiças, distorções, "lobby" grupal e conflitos intergrupais é imenso. A literatura mostra como uma política que tinha por centro a ideia de ação afirmativa (para a construção das nacionalidades) contribuiu para a dissolução do estado soviético, exacerbando tensões intergrupais pré-existentes e fabricando novas. No caso identitário pós-moderno do capitalismo tardio, não se trada de construção da nação, mas antes de insularização de identidades pela via de um identificacionismo ao mesmo tempo fluido e determinista.
A lógica aplica-se a todo o mundo corporativo: séries na Netflix, no Amazon Prime, nos filmes... Numa nova versão do "black face", pinta-se de preto a face de todos os personagens históricos ou tantos quanto se possa. A diretoria das grandes empresas apresenta, então, sorridente, um número suficiente de mulheres, mulheres negras, mulheres trans, o primeiro latino, primeiro CEO asiático etc etc - e está tudo bem. É sobre isso. Grandes bancos, grandes multinacionais, big techs, o arco-íris, um sorriso. É a mesma lógica da fabrição e canonização, dentro do Establishment político dos EUA, de figuras como Obama e Kamala Harris.
É a lógica oportunista que se vê na prática de pinkwashing e em alguns usos do discurso de empoderamento feminino, entre outras operações de lavagem de imagem: um imenso arco-íris colorido na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar liderada pelos EUA. E tudo isso é lindo, maravilhoso, e é preciso celebrar, cantar, todo mundo de mãos dadas, na festa da democracia.
Em um de seus livros (não pude me lembrar qual), em meio a um ensaio-prosa sobre o kitsch, Milan Kundera descreve de forma ferina os pensamentos do protagonista-narrador diante do clima de "globalização" e abertura política e econômica de seu país, a república tcheca, com o fim do socialismo. O colapso do mundo soviético e socialista trouxe o fim da ditadura marxista, mas também trouxe uma série de problemas econômicas com uma abertura desregulada ao mercado internacional, novas máfias, crise da previdência e uma série de problemas econômicos. Remetendo a esse contexto, o narrador de Kundera se recorda de um grande outdoor que mostrava uma mão negra apertando uma mão branca, ressaltando que, à época, a maioria dos tchecos nunca havia visto pessoalmente um negro na vida.
O caráter cínico e perverso, farsesco, por trás desse tipo de maquiagem corporativa-governamental salta aos olhos para qualquer pessoa desperta. E a lógica do cotismo está diretamente relacionada.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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