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A Dissidência Tradicionalista como objeto da Academia - respondendo Francisco Thiago Rocha Vasconcelos

Texto originalmente publicado em 1 de fevereiro de 2024 - permanece atual.


Em termos ideológicos, a FSP [Frente Sol da Pátria] busca confrontar os limites do duginismo e do putinismo, vistos como, parafraseando Lênin, ―a "doença infantil da dissidência tradicionalista" (Araújo, 2022). Uma das críticas mais relevantes diz respeito, além da russofilia, à forma como o fascismo e todos os tipos de nacionalismo são homogeneizados na ideia de "terceira teoria política", constituída como a "verdadeira base para a militância do campo dissidente", enquadramento que impediria distinções necessárias na busca de singularidades de projetos políticos nacionalistas revolucionários e não liberais da América Latina e do Sul Global. A FSP [Frente Sol da Pátria], ao contrário, pretende orientar a sua militância em sentido mais próximo das tradições populares brasileiras e latino-americanas, em diálogo com socialistas, trabalhistas e dos movimentos populares urbanos e rurais. O direcionamento é proveniente do perfil dos seus integrantes, mais próximos do campo das organizações e celebrações da cultura popular – carnaval, candomblé, religiões esotéricas, catolicismo, movimentos rurais e de trabalhadores -, interessados em formas de vida alternativa, convictos da recusa ao establishment político-partidário e do progressismo liberal.


O professor  Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, Doutor em Sociologia pela USP, publicou no fim do ano passado (2023) um artigo sobre a Dissidência Tradicionalista -- conceito cunhado por mim para se referir aos movimentos políticos nascidos nos últimos quinze anos a partir do paradigma Tradicionalista. Mais especificamente, Rocha Vasconcelos se propõe a analisar o caráter político dos grupos Sol da Pátria e de certo grupo duginista brasileiro.

Artigo de Francisco Thiago Rocha Vasconcelos
Artigo de Francisco Thiago Rocha Vasconcelos


O artigo "Dissidência tradicionalista: a reinvenção da extrema direita brasileira como aliança ―vermelho-marrom" usa como fonte textos e análises que publiquei no meu blog sobre a História da Dissidência e análises críticas sobre o duginismo, bem como livros publicados pelo Sol da Pátria. Ao longo dos próximos dias, vou fazer algumas pequenas postagens comentando aspectos do trabalho e dialogando com algumas posições defendidas pelo pesquisador.


"A Rainha do Meio-dia", coletânea publicada pelo Sol da Pátria
"A Rainha do Meio-dia", coletânea publicada pelo Sol da Pátria

O artigo de Rocha Vasconcelos (clique aqui), que pode ser lido na edição de dezembro de 2023 do Almanaque de Ciência Política da Universidade Federal do Espírito Santo, afirma que Sol da Pátria e o grupo duginista citado seriam dois contrapontos no interior da Dissidência Tradicionalista [brasileira], enfatizando as críticas que fazemos (no Sol da Pátria) ao duginismo e à russofilia. O artigo faz, no entanto, uma ressalva: a de que não é possível distanciar completamente os dois movimentos [o Sol da Pátria e os duginistas] por ambos [supostamente] usarem como "referencial" o Tradicionalismo e René Guénon.


Ora, esta avaliação de Rocha Vasconcelos pode ser uma banalidade ou uma tremenda petição de princípio. É petição de princípio, já que não demonstrado em ponto algum do artigo, imaginar que o Tradicionalismo seja, por si mesmo, uma posição política. Porém, como o próprio autor admite que "o Tradicionalismo, de fato, pode conduzir a inúmeros caminhos - especialmente nos meios de contracultura, que buscam formas alternativas de vida, e em diversas modalidades de militância política ou mesmo apolítica", só resta concluir que não passa de uma banalidade, algo como dizer que o socialismo e o liberalismo não poderiam ser inteiramente desconectados um do outro, pois ambos são herdeiros do paradigma Iluminista. Ou que o fascismo e o socialismo são ambos políticas de massas. E daí? Rocha Vasconcelos está tão somente contornando o fato de que, a partir do paradigma Tradicionalista, é possível defender agendas políticas contrastantes. 


Hakim Bey, Tradicionalista e anarquista


O Tradicionalista Frithjof Schuon com indígenas norte-americanos

O então Príncipe de Gales, hoje Rei Charles, ambientalista e Tradicionalista
O então Príncipe de Gales, hoje Rei Charles, ambientalista e Tradicionalista
Julius Evola, aristocrata italiano

Príncipe Charles (hoje Rei Charles), notório Tradicionalista da Escola Perenialista, discursando sobre a Filosofia Perene, Martin Lings, Seyyed Hossein Nasr, a Árvore da Vida, René Guénon...


Para defender o argumento, o sociólogo [Rocha Vasconcelos] afirma que, apesar de não ser racista, Guénon parecia considerar a falta de unidade racial uma fraqueza da Europa, pensamento este que serviria de "ponte", segundo Rocha Vasconcelos, para uma associação de algum tipo com vertentes anti-imigracionistas [racistas] que temem pelo desaparecimento da raça branca. Mais ainda, Rocha Vasconcelos atribui a Guénon a defesa de uma suposta "autonomia de civilizações étnicas" como um caminho para a restauração da Europa Tradicional. O problema é que estas alegações do pesquisador estão em desacordo com as obras do metafísico francês, incluindo aí a que ele próprio dá como referência [Oriente e Ocidente] [vide citação abaixo em destaque].



"Oriente E Ocidente" de René Guénon
"Oriente E Ocidente" de René Guénon


“[...] os ocidentais de hoje permanecem convictos de que o progresso, ou aquilo a que dão esse nome, pode e deve ser contínuo e indefinido. Iludindo-se mais do que nunca cerca de sua própria importância, arrogaram-se a missão de levar esse progresso ao mundo inteiro, impondo-o pela força, se necessário, a povos que cometem o erro - imperdoável a seus olhos - de não o aceitar com prontidão. Esse furor propagandístico que já mencionamos é perigosíssimo para todo o mundo, mas sobretudo para os próprios ocidentais (...).

[O Ocidente] afigura-se aos orientais como uma criança que, orgulhosa por ter adquirido rapidamente alguns conhecimentos rudimentares, se acredita possuidora do saber total e quer ensinar anciões repletos de sabedoria e experiência. Isso seria apenas um vício inofensivo e risível se os ocidentais não tivessem à sua disposição a força bruta; mas o emprego que fazem dessa força muda por completo o aspecto geral das coisas, pois é nisso que reside o perigo para aqueles que involuntariamente entram em contato com eles, e não numa “assimilação” que os ocidentais são de todo incapazes de realizar, pois não estão nem intelectualmente, nem mesmo fisicamente, qualificados para implementá-la. Com efeito, os povos europeus - sem dúvida por serem formados por elementos heterogêneos e por não constituírem uma raça propriamente dita - são aqueles cujas características étnicas são mais instáveis e desaparecem mais rápido, quando se misturam com outras raças; em toda parte onde ocorrem tais misturas, é sempre o ocidental que, longe de ser capaz de absorver os outros, acaba sendo ele próprio absorvido. Quanto ao ponto de vista intelectual, as considerações que expusemos até aqui nos dispensam de insistir no assunto; é evidente que uma civilização sempre em movimento, sem tradição nem princípio profundo, não pode exercer uma influência real sobre aquelas que possuem tudo aquilo de que ela própria carece. (...)Há verdades que devem ser ditas e repetidas com insistência, por mais desagradáveis que sejam para muita gente: todas as superioridades de que os ocidentais se gabam são puramente imaginárias, com exceção unicamente da superioridade material [tecnológica]; esta é muitíssimo real, ninguém a contesta e, no fundo, ninguém inveja; o problema é que os ocidentais abusam dela. Para quem tem coragem de ver as coisas como são, as conquistas coloniais não podem - como aliás qualquer conquista operada pelas armas - se basear em nenhum outro direito que não da força bruta. (...) Quando uma nação europeia domina um país qualquer, embora habitado por tribos realmente bárbaras, ninguém nos fará crer que foi pelo prazer ou pela honra de “civilizar” essas pobres pessoas (as quais nada pediram) que uma expedição custosa foi realizada, seguida por dificuldades de todo tipo; é preciso ser muito ingênuo para não perceber que o verdadeiro motivo é muito diferente e reside antes na esperança de lucros mais tangíveis. Quaisquer que sejam os pretextos alegados, trata-se antes de tudo de explorar o país e também, se possível, os seus habitantes, pois não se pode tolerar que continuem a viver com o que quiserem, mesmo que não atrapalhem; no entanto, como a palavra “explorar” soa mal, a linguagem moderna chama esse processo de “desenvolver os recursos” do país: a coisa em si não muda, mas basta mudar a palavra para que a situação já não seja chocante para a sensibilidade comum”.

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Trecho de “Oriente e Ocidente” de René Guénon. O trecho mencionado por Francisco Thiago Rocha Vasconcelos está em negrito. Os trechos que quisemos destacar estão sublinhados. Note-se o contexto e como se trata de um texto irônico, denunciando o etnocentrismo ocidental e o colonialismo (enquanto afirma que não existe raça europeia pura e nem existe superioridade ocidental) - a tentativa de aproximar esse texto de qualquer forma de racismo de extrema-direita parece-nos no mínimo extremamente forçada.


Fonte: Capítulo 4 - "Terrores quiméricos e perigos reais" in: René Guénon, “Oriente e Ocidente”, editora Bismillah, selo "Estrela da Manhã", 2022 , p. 77-79 

[Nota do Sol da Pátria]


René Guénon - "Oriente e Ocidente"

Guénon anti-colonial: "The Perennial Solidarity of the East", artigo de Mattias Gori Olesen


Ora, Guénon não via na ausência de unidade étnica ou racial o grande problema da Europa. Afinal, ele também atribuía esta mesma ausência de unidade racial a algumas das civilizações orientais que ele considerava até mesmo superiores ao Ocidente, dentre elas a civilização muçulmana [não custa lembrar que Guénon se converteu ao Islã] e a civilização indiana [também não custa lembra que a exposição metafísica do francês se fundamenta, principalmente, em doutrinas hindus, como o Advaita Vedanta]. 


A unidade destas civilizações [orientais], segundo ele, se encontrava em dada forma tradicional, e a Tradição seria perene e sobre-humana. Já a unidade europeia seria impossível se baseada na etnia e na raça, já que ele [Guénon] considerava o continente [europeu] um grande mosaico de misturas étnico-raciais. Para Guénon, a 'retificação' do Ocidente viria ou de um retorno à forma religiosa cristã [processo em que ordens maçônicas e hermetistas desempenhariam um papel fundamental] ou em sua conversão a uma outra forma tradicional. 


Não deixa de ser curioso que Rocha Vasconcelos veja em Guénon a possibilidade de defesa de ''políticas anti-imigracionistas'' típicas da direita europeia quando muitos dos opositores do autor francês o veem justamente como um ''agente de islamização'' do continente europeu [ou do Ocidente] -- acusação brandida, por exemplo, por Olavo de Carvalho a partir de 2006, por exemplo. Afinal, o próprio Guénon, católico-romano durante os anos 1920, em que descreveu as supostas alternativas diante das quais o Ocidente se encontrava, se 'reverteu' ao Islã quando se mudou para o Egito [muçulmanos preferem falar em "reversão" e não conversão"]. 


O francês René Guénon em trajes islâmicos no Cairo, onde foi morar em 1930 e onde morreu em 1951. Seria esse um autor cujas ideias podem ter relação com movimentos de direita islamofóbicos?

Isso revela o quanto Guénon pode ser um personagem complexo, difícil, uma verdadeira esfinge. Se alguém quiser defender algum etnicismo a partir de Guénon, o fará por sua própria conta e risco, porque não há nada que implique isto nas obras e na vida do autor, um francês que escreveu obras baseadas em doutrinas hindus, foi morar no Norte da África, se tornou um Sheykh [xeique] muçulmano e se casou com uma egípcia com quem teve quatro filhos. Enfim, a divergência que  o preocupava, entre Oriente e Ocidente, era de ordem Intelectual, e Intelecto tem um significado [próprio] em Guénon que parece escapar ao trabalho de Rocha Vasconcelos.


Existem outros pontos do artigo a que voltarei. Para fechar este texto, cumpre rebater uma das alegações da análise do sociólogo: a de que haveria uma "aliança" entre Sol da Pátria e MBL [Movimento Brasil Livre]. Esta informação é jogada no artigo como se fosse algo dado e a referência é [tão somente] uma [única] participação de Ricardo Almeida em uma live do canal do Youtube do SdP. Ora, nesse mesmo canal temos lives com Nildo Ouriques, do PSOL e da "Revolução Brasileira"; Rogério Anitablian, nacionalista que tem se posicionado de modo favorável ao Governo Lula; com o Professor livre-docente André Martin, que dá aulas na mesma Universidade [USP] em que Rocha Vasconcelos fez seu doutorado e que sempre foi simpático aos governos do PT; com Josias Teófilo, cineasta que admira a obra de Olavo de Carvalho; com Fausto Oliveira, autor desenvolvimentista e nacionalista; Aldo Rebelo, político marxista que dispensa apresentações; e muitos outros [como o marxista Rui Costa Pimenta do PCO, Elias Jabbour etc]. Se meras lives no Youtube significam ''aliança política'' para o pesquisador, qual nome ele daria para chapas como Dilma-Temer ou Lula-Alckmin? Casamento?


A ex-Presidente Dilma Rousseff e seu Vice, Michel Temer
A ex-Presidente Dilma Rousseff e seu Vice, Michel Temer


Posse do Presidente Lula da Silva e seu vice, Geraldo Alckmin
Posse do Presidente Lula da Silva e seu vice, Geraldo Alckmin
"Lives" do Sol da Pátria com variados atores políticos e intelectuais brasileiros


A alegação de Rocha Vasconcelos, em suma, não tem qualquer fundamento acadêmico ou analítico sério. Enfim, não há aliança política entre o Sol da Pátria [que, em seu Manifesto, se define como trabalhista e anti-liberal] e o MBL, ainda que membros dos dois grupos possam ocasionalmente convergir em pautas específicas ou dialogar sobre assuntos de interesse comum [a partir de uma perspectiva mínima de soberania e de interesse nacional]. 



As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria



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