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EUA reivindicam grande parte do fundo do oceano, do Golfo do México ao Ártico


Um acontecimento extremamente importante está sendo pouco divulgado: os Estados Unidos da América reivindicam agora uma vasta porção do fundo do oceano, que equivale a duas vezes o tamanho da Califórnia. De acordo com a nota para a imprensa do Departamento de Estado dos EUA (DoS), divulgada em 19 de dezembro, a área “abrange aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados espalhados por sete regiões” e “detém muitos recursos”.



divulgou as coordenadas geográficas que definem os limites exteriores da plataforma continental dos EUA em áreas além de 200 milhas náuticas da costa, conhecidas como a plataforma continental estendida (ECS, em inglês - extended continental shelf)”. 

O mapeamento também foi realizado pela chamada Força-Tarefa ECS dos EUA, a US ECS Task Force (um órgão americano composto por 14 agências diferentes).


A coleta de dados relativos a esta iniciativa, supostamente “o maior esforço de mapeamento offshore” já realizado por Washington, começou, na verdade, em 2003, e envolveu a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA) e o Serviço Geológico dos EUA (USGS).


De acordo com o Resumo Executivo do Departamento de Estado americano (DoS) intitulado “Os Limites Exteriores da Plataforma Continental Estendida dos Estados Unidos da América” (página 13), a superpotência atlântica tem “fronteiras marítimas” ou fronteiras “não resolvidas” - referentes à chamada Plataforma Continental Extendida (ECS, em inglês) - com os seguintes “países vizinhos”: México, Cuba, Bahamas (região Atlântica), Japão (região das Ilhas Marianas) e Rússia (região do Mar Ártico e de Bering), Canadá (nas regiões Ártica e Atlântica).


Embora seja um anúncio explosivo, por enquanto é difícil encontrar notícias sobre isso nos principais jornais, com exceção do Bloomberg, Telesur e alguns outros (e quase nada em português). No entanto, a questão tem imensas repercussões potenciais - políticas e geopolíticas. Os EUA não só se tornaram maiores, em termos territoriais, agora (do ponto de Washington): mais do que isso, trata-se, aqui, de reivindicar direitos de soberania em áreas ricas em recursos onde se poderiam encontrar os chamados “minerais críticos” necessários para projetos de energia renovável, que configuram “as principais preocupações de segurança nacional” para o governo de Joe Biden, como escreve a jornalista Danielle Bochove, do Bloomberg. De acordo com James Kraska, pesquisador da Escola de Guerra Naval dos EUA, essas reivindicações referentes à área da suposta plataforma continental americana lançam luz sobre os interesses estratégicos dos EUA em garantir esses minerais críticos para assegurar “a prosperidade econômica americana e a sua segurança nacional”.


Tais reivindicações unilaterais, que só podem ser descritas como uma ousada tomada de território, incluem também Bering e o Mar Ártico, onde a Federação Russa, bem como outros Estados, também têm reivindicações territoriais. O anúncio do Departamento de Estado vem à tona sem conversas diplomáticas significativas com outros atores e sem acordos bilaterais - mais ainda: sem que tenha sido apresenta nenhuma solicitação por meio de quaisquer estruturas relevantes ou mecanismos das Nações Unidas (ONU), num claro desafio à ordem global “baseada em regras” que Washington supostamente respeita. Ironicamente, os EUA justificam essas aspirações tão amplas fazendo referência à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) de 1982, que Washington, aliás, nunca ratificou.


Mead Treadwell, ex-vice-governador do Alasca (que também foi presidente da Comissão de Pesquisa do Ártico dos EUA em 2006-2010) insiste que Washington ratifique tal Convensão, caso contrário, alerta, poderão surgir problemas: “é um problema se alguém nos desafiar, por acreditar que detem direitos em relação à mesma porção terra [no fundo do mar]”. Não é possível enfatizar em excesso o fato de que o enorme território agora reivindicado pelos EUA estende-se até o Árctico, uma área considerada estratégica pela Rússia - e a China também tem planos para a região, descrevendo a si própria como “um Estado próximo ao Pólo Norte”.


As autoridades russas, não surpreendentemente, criticaram o anúncio americano. Grigory Karasin, presidente do Comité dos Negócios Estrangeiros do Conselho da Federação, respondeu afirmando que “tomamos e continuaremos a tomar todas as medidas que são necessárias para os nossos interesses nacionais nessa área geográfica”. Da mesma forma, Nikolai Kharitonov, chefe do Comité Estatal sobre o Ártico da Duma (câmara baixa da Assembleia Federal russa), disse que a expansão unilateral das fronteiras americanas nesta área é “inaceitável” e pode levar a um “aumento da tensão”. Em abril de 2021, escrevi sobre como os planos da OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte, liderada pelos EUA) para militarizar o Árctico constituem uma fonte de tensão com Moscou - e agora isso é exponencialmente incrementado pela expansão territorial unilateral americana.


Muito tem sido escrito sobre a corrida espacial como uma nova arena de disputa geopolítica – sendo o espaço sideral entendido como o “novo mar” a ser desbravado. Bem, considerações semelhantes podem se aplicar à plataforma continental e ao próprio mar profundo, com os seus recursos e fauna inexplorados, além de uma problemática falta de nomos (falta de lei) no que se refere à mineração no fundo do mar e, o que é mais sério ainda, às reivindicações territoriais e de soberania, como vimos .


A questão pode ser abordada a partir de mais de um ângulo, sendo este também mais um exemplo dramático do “cerco” que os EUA levam a cabo ao redor da Rússia, que, aliás, também se materializa na chamada “OTANização” da Europa: as candidaturas finlandesas e suecas à Aliança Atlântica, por um lado, resultam no alargamento do alcance territorial da Aliança, que passa até a se estender até o flanco oriental do Árctico russo, fazendo assim da Rússia o único Estado não pertencente à OTAN no Árctico.


A guerra que Washington trava contra Moscou na Ucrânia, uma guerra de desgaste por procuração (“attrition proxy war”) - como a descreveu o ex-embaixador dos EUA na Finlândia Earle Mack - pode muito bem estar chegando ao fim com um acordo de paz em troca de concessões territoriais prestes a ser firmado (depois das eleições nos EUA, naturalmente), contudo, como podemos ver, existe agora um vasto campo fértil para potenciais conflitos futuros desencadeados pelas recentes reivindicações territoriais norte-americanas no fundo do oceano.


Nota do Sol da Pátria: A forma como a Rússia reagiu à condenável expansão da OTAN (invadindo a Ucrânia) cruzou uma linha vermelha, configurando uma "aposta de alto risco" e, assim, a "transição para a multipolaridade", longe de ser uma espécie de panaceia, tem-se mostrado, na verdade, um período extremamente instável e perigoso, no qual não apenas as potências contra-hegemônicas mas também potências regionais aliadas do Ocidente sentem-se "autorizadas" a redesenharem suas fronteiras pelo uso da força, o que, evidentemente, abre precedentes perigosíssimos, inclusive para a América Latina e o Brasil - vide o caso de Israel e sua anexação de facto de Gaza e o caso do Azerbaijão em relação ao exclave armênio (ofensiva militar apoiada pela Turquia e pelo Estado judeu) e, mais recentemente, a crise entre Guiana e Venezuela a respeito de Essequibo.

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