O papel de Alexandre de Moraes, transformado em um tipo de Inquisidor Geral da Nova República, representa fielmente a concentração de poderes na juristocracia. A maior parte dos defensores da Nova República, a esquerda à frente, parece dormir muito bem com a tutela de uma República semipresidencialista, uma situação anormal não apenas diante da Constituição de 1988, mas também de nossa história e cultura política. Afinal, golpe ruim é o dos outros
Quanto mais notícias temos sobre a tentativa de golpe (clique para ler), mais claro fica que o então Presidente Jair Bolsonaro não mergulhou de cabeça porque não teve apoio da maioria dos Generais para embarcar na aventura. Marco Antônio Freire Gomes, então Comandante do Exército, chegou a ameaçar o Presidente de prisão caso implementasse a minuta golpista. O General Júlio Cesar de Arruda, que substituiu Freire Gomes na função, espinafrou o General Mário Fernandes quando ele sugeriu adesão aos planos de Braga Netto. Os conspiradores choramingavam em audios a falta de apoio da maior parte do Alto Comando e deliravam sobre mudanças no âmbito de decisão das Forças Armadas quando estivessem poder.
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Ainda assim, parte considerável da esquerda e da mídia aproveita as revelações da trama contra Lula para destinar ódio em relação às Forças Armadas. Um famoso youtuber comunista cravou que "o Exército no Brasil só serve para dar golpes". Seria como se alguém olhasse a Intentona de 1935 e concluísse que comunistas no Brasil só servem para trair o país em nome de interesses estrangeiros.
Trabalhistas e getulistas tampouco devem cair nessa esparrela. O Estado Novo de Vargas só foi possível pelo apoio incondicional do Exército do General Góes Monteiro e de Eurico Gaspar Dutra.
Juscelino Kubitschek [outro nome importante para trabalhistas], por sua vez, só assumiu a Presidência graças ao "golpe preventivo" do General Henrique Teixeira Lott, que, não por acaso, foi candidato à Presidência da República pelo PTB em 1960. Como se vê, há golpes e golpes.
O conceito [de "golpe"] se refere apenas a um meio específico empregado para tomar o poder, e nem sempre encarado de forma deletéria.
Costumamos, afinal, reverenciar as tentativas de golpe tenentistas na década de 1920. Temos monumentos no Brasil para homenagear os 18 do Forte. Temos ainda um feriado nacional que comemora o 15 de Novembro, data da Proclamação da República, leia-se, do golpe [militar] do General Deodoro da Fonseca, que derrubou o civilista Império do Brasil. Deodoro desferiu um golpe também em 1891, mandando fechar o Congresso, mas não foi bem sucedido porque, diferente do 15 de Novembro famoso, a Marinha decidiu intervir. Udenistas, na década de 1940, em uma Frente Ampla com apoio de praticamente toda a grande mídia, comemoravam o golpe militar que retirou Getúlio do poder.
Nem todo golpe de Estado nasce de conspiração militar. Aliás, dificilmente um golpe militar é perpetrado com êxito sem participação e apoio ferrenho de grupos poderosos da sociedade civil. Nem mesmo o período ditatorial entre 1964 e 1985 pode ser visto como um regime meramente militar, sendo isto somente uma mitologia inventada pela Nova República como forma de se criar um consenso nacional que fizesse do Exército um grande bode expiatório. Ao expressar seu anti-militarismo, os atuais indignados papagueiam tal mito e se esquecem de se perguntar ou de ir atrás dos financiadores e apoiadores civis da trupe amalucada de Bolsonaro.
Aliás, nem todo golpe é desferido com participação ou dependência das Forças Armadas. É perfeitamente possível ler a Operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma em clave golpista, algo que Lula e seus aliados fizeram até bem recentemente, antes que as conveniências políticas adormecessem o estridente discurso que nos lembrava da anormalidade que vivíamos, com uma juristocracia atuando como Poder Moderador da República.
A juristocracia abandonou a primeira instância em Curitiba e se consolidou no Supremo Tribunal Federal, de modo parecido com a maneira como o tenentismo desaguou na agência política do Alto Comando do Exército após a Doutrina Góes. Neste exato momento, um corpo ou órgão do Estado exerce o poder político sem qualquer necessidade de passar por eleições. Os Ministros da Corte Suprema [o STF] são tão especiais que tem a prerrogativa de decidir o que vale e o que não vale no texto constitucional, decifrando seu real sentido ao sabor das contingências do dia.
Ora, o STF libertou Lula da prisão ao ''descobrir'' as arbitrariedades cometidas por Sérgio Moro e cia. em sua sanha persecutória, ainda não de todo esclarecida nem muito menos punida. Segundo o cientista político Christian Lynch, o novo sistema político diminuiu então a força do Poder Executivo e a partilhou com o Congresso e o STF:
"Na sua avaliação, o Supremo atua nesse arranjo como uma terceira câmara do Legislativo, e a recente indicação do ministro da Justiça Flávio Dino para a Corte reforça a tendência de um tribunal com perfil mais político nos próximos anos." [Fonte: "O Novo Presidencialismo de Coalizão", O Globo]
O novo arranjo surgiu da criatividade de elites bem posicionadas no aparato estatal, mas não pediu opinião e aprovação do restante da população. A adoção de um semipresidencialismo tutelado pelo STF, em todo caso, foi tema do Ministro Dias Toffoli quando participou de um fórum em Lisboa - ele admitiu:
"Nós já temos um semipresidencialismo com um controle de Poder Moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Basta verificar todo esse período da pandemia”, disse o magistrado, citado pelo site Poder360. Toffoli não é o único entusiasta da mudança entre os ministros do STF. Nos últimos meses, magistrados como Luís Roberto Barroso – que também preside o Tribunal Superior Eleitoral – e Gilmar Mendes revelaram simpatia pelo sistema". [Fonte: "Semipresidencialismo tutelado"]
O Ministro do STF Gilmar Mendes criticou mais de uma vez o "Presidencialismo cesarista'' que, segundo ele, existia no Brasil. Críticas assim eram comuns em grupos defensores do parlamentarismo, uma discussão esvaziada com a derrota do modelo no Plebiscito de 1993.
Mas, em todo caso os críticos do Poder Executivo [presidencial] não descansaram até que pudessem adotar a configuração atual, com o superdimensionamento do STF. O papel de Alexandre de Moraes, transformado em um tipo de Inquisidor Geral da Nova República, representa fielmente a concentração de poderes na juristocracia. Alguns acadêmicos falam de Democracia Militante [que parece ser uma variação a ideia de "democracia defensiva"], mas não errariam se preferissem "Ditadura da Toga".
"Diante de ameaças violentas ou não violentas ao regime democrático, a teoria da democracia militante se apoia na possibilidade de restringir princípios e direitos fundamentais, individuais ou coletivos, para proteger a democracia. Entre as medidas identificadas por Loewenstein para cumprir esse objetivo encontram-se legislações que criminalizam incitações à violência e ao ódio, rebeliões, insurreições ou levantes armados contra o Estado, até legislações que preveem o banimento de partidos políticos e movimentos subversivos, assim como a proibição de atividade política por membros das Forças Armadas." [Fonte: "Crise Democrática"]
Os cidadãos brasileiros não foram avisados nem puderam escolher o novo sistema "semi-presidencialista" atual, que, na verdade, reformula inteiramente o pacto inscrito na Constituição de 1988. Chegamos ao ponto do Senador Randolfe Rodrigues, líder do Governo no Congresso, se mostrar imensamente surpreso diante de jornalistas quando informado que o semipresidencialismo não consta na Carta Magna [a Constituição] nem, a rigor, em legislação alguma do país:
"Em relação à execução de emendas, vamos dialogar. O nosso regime é semipresidencialista, foi assim que a Constituição de 1988 fundou o regime republicano semipresidencialista no Brasil. Tem o Executivo, tem um governo que tem que fazer a execução. O Executivo que é o ordenador da despesa", declarou o senador, que representa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas sessões do Congresso Nacional. [...]Repórteres disseram a Randolfe que o sistema é presidencialista. Ele respondeu: "pela Constituição de 1988 é semipresidencialista. Tem um sistema, os poderes do Parlamento, a doutrina constitucional já proclama isso porque os poderes do Parlamento foram ampliados a partir da Constituição de 1988 em relação ao regime anterior" [Fonte: "Líder do governo jura que vive em sistema semipresidencialista"]
A maior parte dos defensores da Nova República, a esquerda à frente, parece dormir muito bem com a tutela de uma República semipresidencialista, uma situação anormal não apenas diante da Constituição de 1988, mas também de nossa história e cultura política. Afinal, golpe ruim é o dos outros.
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